Como a poluição afeta o ciclista que pedala nas ruas

Atualizado em 23 de outubro de 2018

Médico formado pela Universidade de São Paulo, diretor do Instituto de Estudos Avançados da USP e pesquisador nas áreas de Fisiopatologia Pulmonar, Doenças Respiratórias e Saúde Ambiental, o professor Paulo Saldiva é um dos maiores especialistas em poluição do País.

A esse conhecimento ele soma as observações e reflexões acumuladas por pedalar pelas ruas e avenidas paulistanas desde o ano em que era calouro da faculdade, em 1972. O conhecimento científico, entrelaçado à experiência pessoal, o qualificam como uma das vozes mais peculiares e interessantes a ser ouvidas quando se pretende ponderar sobre como a poluição afeta o ciclista que pedala nos grandes centros urbanos. 

Saldiva oferece informações importantes a quem trafega em ambientes poluídos e quer ao menos reduzir os estragos causados pela fumaça. O professor sexagenário nos concedeu a seguinte entrevista: 

 

VO2Bike – Vemos muitos ciclistas em São Paulo usando máscaras, preocupados com a poluição. Até que ponto elas de fato protegem os pulmões?

Paulo Saldiva – É evidente que o ciclista pode reduzir a carga de poluição à qual está exposto utilizando máscaras. Tem um artigo no Journal of the American College of Cardiology em que é relatado um estudo: colocaram pessoas com insuficiência cardíaca que se exercitaram com e sem máscaras. Durante as provas de esforço usaram o meio ambiente e o ar filtrado. De fato, se você pegar um cardíaco ou um asmático, eles vão responder de uma forma positiva mais exacerbadamente em comparação com pessoas sem doenças crônicas respiratórias ou cardiovasculares. 

Outras comorbidades que causam esse tipo de resposta são diabetes e obesidade. A gente imaginava que um problema era completamente endocrinológico e o outro, metabólico. Mas, no fundo, são doenças inflamatórias. Para essas pessoas já foi demonstrado o benefício de máscaras. Para o cidadão comum você tem algumas evidências que ainda são inconclusivas. Há estudos que relatam que existem benefícios e outros que relatam que não existem. Mas, para essas quatro situações (obesos, diabéticos, asmáticos, cardiopatas) o uso de máscaras ajudaria.

Além disso, há fatores genéticos que vão independer das condições de doenças preexistentes que vão determinar a vulnerabilidade do indivíduo à poluição do ar. Pegando uma análise do fumante: embora quanto mais você fume, maiores sejam os riscos de você ter bronquite crônica, enfisema ou câncer, existem pessoas que, para o mesmo nível de fumo, não desenvolvem câncer nem enfisema.

Aliás, o câncer de pulmão é a exceção dos fumantes. Aumenta o risco, mas em relação ao seu risco genético. Numa população de milhões, você vai ter pessoas que, com baixa dose de fumo ou no convívio com fumantes vão desenvolver doenças que outros fumantes, muito mais pesados do que eles, não tiveram. A pergunta, portanto, não tem uma resposta.

De um modo geral, ciclistas que não têm doenças crônicas inflamatórias, nos níveis de poluição da cidade de São Paulo, vão receber mais poluição enquanto estiverem no corredor de trânsito, mas eles ficarão menos tempo no corredor de trânsito, porque não ficam presos em congestionamentos intermediários.

E a questão que fica é: esse ciclista sem máscara recebe mais poluição em comparação a quem? A ele mesmo ou a quem fica no trânsito parado, sem poder ir a lugar algum, mais tempo exposto?

 

VO2Bike – Então é interessante que o cidadão pedale, mesmo sem máscara, porque ficará menos tempo exposto à poluição…

PS – Sim. Além disso, a mobilidade ativa está significativamente associada à maior expectativa de vida. Então a pergunta é: se você pegar um indivíduo e medir marcadores dele (para inflamações pulmonares) quando entrar no corredor de trânsito pedalando, alguns se manifestarão aumentados algum tempo depois. Isso é verdade.

Mas se a alternativa dele for ir de ônibus ou de carro, é possível que os marcadores dele, nesse caso, sejam mais aumentados, embora a dose seja menor… É como na dose de um pesticida na água, por exemplo… A quantidade será maior se você beber mais dessa água contaminada.

Na poluição do ar o mesmo raciocínio se aplica. Depende, primeiro, da tua taxa de ventilação. No caso do ciclista, ele respira mais, por estar fazendo o exercício, e inalará um volume maior desse ar poluído. Teoricamente, portanto, essa ventilação aumenta a deposição de poluentes nos pulmões dele. Mas há outro fator: o tempo de exposição e, com base nessa variável, o ciclista ficará menos tempo exposto.

Além disso, há vários estudos demonstrando que o exercício regular tem um benefício anti-inflamatório. Além de você perder peso, diminuir o risco de diabetes e melhorar sua capacidade cardíaca, a prática regular de exercícios é anti-inflamatória. 

Resumindo minha opinião, até como ciclista, porque já fiz essa pergunta até pra mim, é: a dose de poluição que recebo, como ciclista, é menor em comparação com a que o cara que fica preso no corredor de tráfego recebe. Fiz umas contas pra mim. Com um frequencímetro cardíaco e um medidor portátil de poluentes, consigo calcular o volume de poluentes inalado. E há ainda os benefícios adicionais que o exercício crônico proporciona.

 

VO2Bike – A máscara então seria dispensável?

PS – Pode ser que, se você estiver em Pequim ou em outras cidades com níveis muito anômalos de poluição, a mobilidade ativa devesse estar acompanhada de uma máscara. Aqui em São Paulo, se você puder usar uma, ok. Mas a máscara que de fato lhe assegura proteção total é o filtro EPA, que tira os poluentes particulados.

As nanopartículas do tráfego você não consegue brecar. Quanto aos poluentes na fase gasosa, você precisaria ter uma camada de carvão ativado ou permanganato de potássio. Mas a força que o indivíduo tem que fazer para respirar com uma máscara dessas torna difícil a prática de qualquer atividade física.

Com uma máscara de pintor, é claro que você vai reduzir o risco, mas não eliminar. Mas também tem um conteúdo simbólico quando você vê um monte de ciclistas pedalando com máscara. Eles estão manifestando que não estão satisfeitos com esse ar que estão respirando.

Isso pode motivar uma mudança de comportamento, pode forçar uma política pública, contribuir para mudar os padrões de qualidade do ar.

 

 

 

VO2Bike – E o quanto essa exposição interfere na expectativa de vida do ciclista?

PS – Fazendo uma conta muito contra a bicicleta, calculo que eu perca uns cinco ou seis meses de vida por causa da poluição que recebo ao pedalar. Mas eu ganho uns três anos e meio ou quatro anos graças ao exercício. Dá um saldo positivo de alguns anos. O pior cenário pra mim, portanto, é ficar sedentário no trânsito. 

 

VO2Bike – Como se calcula quantos anos de vida o ciclista ganha por pedalar?

PS – Depende da intensidade do exercício e da frequência e duração no tempo. Empiricamente, podemos dizer que excesso de exercício encurta a vida. Alguns estudos enfocam atletas que participaram de Olimpíadas nos anos 70, que tinham então 20, 30 anos e agora têm 60, 70.

Parte deles está morrendo de morte morrida. A sobrevida deles é menor do que a de gente que praticou esporte moderadamente. A intensidade do consumo de oxigênio talvez tenha provocado esse envelhecimento precoce.

 

VO2Bike – A poluição está aí. No caso do ciclista, ele pode transitar pelos grandes corredores de tráfego, mas deve pensar em alternativas, como vias paralelas, com menos poluição?

PS – Falo por experiência própria. Se o corredor de trânsito tiver ciclovia boa, vá pela ciclovia do corredor. Porque os riscos de sofrer um acidente numa via sem ciclovia, de alguém abrir a porta de um carro quando você estiver passando ou de cair num buraco são bem mais pesados para a sua vida do que o impacto da poluição.

Esse é o princípio geral. Portanto, entre pedalar na poluição que existe na ciclovia da Paulista ou pedalar na Alameda Santos ou na São Carlos do Pinhal, por exemplo, não tenho dúvida: pedalo na ciclovia da Paulista.

Outra coisa: a poluição cai exponencialmente com a distância, a 200 metros do foco da poluição. O ozônio sobe, mas a 150 metros ou 200 metros das avenidas, o componente primário da poluição cai e você tem um nível de poluição menor.  

No caso da bike, é um aspecto fundamental. Se não tiver ciclovia nem na avenida principal nem na via paralela (ou se houver nas duas), vá pela paralela. Se você afastar 100 metros da via principal, vai reduzir na média em 50% a exposição à poluição. As chaminés das cidades hoje são as avenidas.

 

VO2Bike – O senhor ainda pedala, né?

PS – Pedalo. Voltei a pedalar com força total. Em média 40km por dia. Moro no Bixiga e venho até o IEA (Instituto de Estudos Avançados da USP). Dá 15 km de lá até aqui. Rodo depois mais uns 30 minutos aqui dentro da Cidade Universitária. Aproveito para treinar aqui.

Na rua, ando no estilo tio, mais devagar. Para treinar e aumentar minha capacidade física, pedalo dentro da USP, mais forte. Depois rodo novamente no estilo tio fora daqui. Temos que andar mais devagar nas ciclovias porque elas são também compartilhadas por pedestres.

O ciclista não pode fazer com o pedestre o que os carros fazem com o ciclista. Vejo hoje, com tristeza, quando estou na Paulista, que os ciclistas não respeitam a faixa de segurança do pedestre no canteiro central. Isso demonstra que, em geral, não há nenhuma melhoria ética num cidadão que sobe numa bicicleta em comparação a quem dirige.

Em geral, para a maior parte dos habitantes, sejam eles motoristas, ciclistas ou skatistas, quem tem mais força oprime o mais fraco.

 

VO2Bike – Na maioria das vezes o senhor utiliza a bicicleta como modal de transporte. Mas também costuma pedalar em grupo?

PS – Não tenho tempo pra isso. Quando entrei na Faculdade de Medicina, eu tinha 17 anos. Tínhamos aulas aqui na Cidade Universitária e na Doutor Arnaldo.

Comecei a trabalhar e era um esportista, remava pelo Clube de Regatas Tietê. A bicicleta era uma boa solução, porque eu ganhava tempo, fazia uma coisa que eu gostava e me preparava melhor para os outros esportes.  

Eu não comecei a pedalar por causa dos meus estudos de poluição. Pedalar começou muito antes. A bicicleta me fez enxergar melhor e entrar na questão ambiental, olhando as árvores escuras de um lado só, vendo o desrespeito ao ciclista, as dificuldades das pessoas presas em ônibus.

A velocidade da bike tem um tempo muito bom para se ver coisas na cidade. São Paulo é grande demais para ser entendida a pé e o trânsito te impede de vê-la quando se está de carro, porque é pesado demais para te permitir algo além de ficar atento para evitar uma colisão.