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A Barkley Marathon me venceu. De novo

Poucas pessoas têm coragem (e preparo) para enfrentar a Barkley Marathon, amplamente conhecida como a corrida mais difícil do mundo. Para concluir a prova, é preciso completar 160 km, em cinco voltas ao redor do Frozen Head State Park, dentro do tempo limite de 60 horas, praticamente sem ajuda externa e GPS, e ainda encontrar livros espalhados pelo trajeto. Não à toa, só 15 pessoas na história concluíram o desafio.

Há três anos, o canadense Gary Robbins tenta colocar seu nome nesta lista. Em 2017, ele chegou seis segundos após o tempo limite, o que aumentou as expectativas sobre seu desempenho nesta temporada. Mas os desafios da prova e de seu próprio psicológico o fizeram fracassar novamente. Nos parágrafos abaixo, ele divide com o Ativo.com um relato de sua última experiência na corrida – neve, assaduras, hipotermia e quebra do equipamento foram apenas alguns dos problemas – e a frustração de novamente ter sido vencido pela Barkley.

 

Correndo a Barkley Marathon

Nada na Barkley Marathon é para ser fácil, e se você quer alguma desculpa para não participar, posso te dar 100 em menos de um minuto. “Ninguém vai fazer isso acontecer a não ser você, Gary, então controle o que você pode controlar e esqueça o resto”, era o que eu pensava antes da corrida.

Chegamos em Frozen Head no fim de quarta, três dias antes da prova, e encontramos muita neve. Consegui levantar para correr até o topo da England Mountain com o nascer do sol, e a altura da neve estava impressionante. Em alguns lugares chegava até o joelho.

Mas a previsão para os dias seguintes era boa, e a maioria das pessoas achava que não haveria neve no percurso no dia da prova. Uma das regras da Barkley e do Parque Estadual de Frozen Head é que você não pode sair das trilhas em nenhum momento fora da corrida. Se você é pego fora da trilha sem ser nas 60 horas da corrida, vai ser convidado a se retirar — e provavelmente nunca será convidado a voltar.

Torci por um pouco mais de luz para poder ter tempo de ver onde eu tinha errado o trajeto durante a quinta volta em 2017. Foram seis metros que me fizeram andar no sentido errado no ano passado. Hoje, vejo que estava seis metros muito a oeste, mas meu cérebro, privado de sono, me fez seguir pelo caminho errado. Na Barkley, erros pequenos se tornam grandes rapidamente, então meu mantra para esse ano foi “ir devagar para ir rápido”.

 

 

Houve três mudanças em relação ao ano passado, duas das quais pareceram favorecer os corredores, enquanto a outra fazia seu livro ficar bem mais longe do que no ano anterior. Estimei que a prova ficasse de 7 a 12 minutos mais longa por volta, ou de 30 a 60 minutos mais difícil, no total.

Dormi bem e estava bem descansado no sábado de manhã, quando a corneta foi tocada às 8h33, nos convocando para a largada dali uma hora. Fui um dos primeiros a chegar, e peguei meu “Relógio Barkley oficial”, um Timex barato que é o único relógio permitido na prova e que conta o limite das 60 horas.

Minha estratégia era simples: ir devagar para ir rápido, fazer a primeira volta sem erros, refrescar minha memória sobre as nuances do percurso e seguir dali.

Começa a Barkley Marathon

Larguei com um grupo lento, de acordo com o meu plano. O primeiro pelotão chegou ao topo da primeira montanha em cerca de 25 minutos, e nós chegamos em quase 30 – eram oito ou dez corredores na minha frente. Pegamos nossa primeira página e continuamos montanha abaixo rumo ao livro número dois. Quando cruzamos o rio, eu já estava à frente da corrida, com um grupo de uns seis corredores.

Também pensei que “quanto mais olhos, melhor” – não havia necessidade de me separar do grupo antes de localizarmos os próximos livros juntos. Mas após a primeira subida fora da trilha, éramos apenas quatro e eu tinha apenas um bastão de trekking, já que consegui quebrar o outro minutos depois de pegá-lo.

Tive bastante ajuda dos corredores do meu grupo com o percurso – um deles havia chegado ao Tennessee quase um mês antes para se familiarizar com alguns trechos do percurso. Nos movemos com facilidade e conseguimos fazer exatamente o que eu tinha planejado, que era fazer uma primeira volta sem erros.

 

O sétimo livro era a terceira e última novidade em relação à edição anterior. Cheguei ao local indicado, procurei pelas árvores, não encontrei nada e segui em frente. Em seguida, um outro atleta chegou ao local e encontrou o livro. Isto é uma das coisas que as pessoas não entendem em relação à Barkley: você pode estar em pé em cima do livro e mesmo assim não vê-lo, a não ser que procure de verdade.

Os livros ficam enterrados em tocos de árvore, embaixo de pedras ou em qualquer outro lugar que seja quase impossível de encontrá-los. Bom, agora eu tinha encontrado todos os livros novos e estava tranquilo em relação ao resto do percurso.

Pela primeira vez em minhas três tentativas de fazer a Barkley Marathon eu passaria por um trecho chamado “Testicle Spectacle”. Chovera de sexta para sábado, e a montanha era uma grande pilha de lama. Não consegui subir nem um centímetro sem deslizar um pouco para trás. Não gostei deste rito de passagem. A alegria do morro a ser descoberto durou cerca de seis segundos.

Chegamos ao cume, agora em três. Subimos pelo Danger Dave’s Climbing Wall, e em seguida fomos para o trecho conhecido como Rat Jaw — uma terrível montanha íngreme e escorregadia (nenhuma foto online faz jus ao que ela realmente é). Trata-se de uma luta que esmaga almas. Pensei como seria subir este morro nas voltas três, quatro e cinco.

Enchemos nossas garrafas, pegamos nossas páginas no livro e largamos montanha abaixo. Caí em um momento, mas imediatamente levantei e continuei correndo. Meu tríceps grita e penso que ele vai se desintegrar. Só na Barkley sua chance de ter uma lesão nos membros superiores é tão grande quanto a de ter uma lesão nos membros inferiores. A carga de força nos membros superiores necessária para a prova é muitas vezes subestimada, mas trata-se de um exercício de corpo inteiro com dois dias de duração.

Passamos pelas duas últimas subidas rumo ao acampamento após o que poderia ser descrito como “uma primeira volta perfeita”.

Faltando pouco mais de 1 km para chegar lá, Guillaume, um dos corredores que seguia comigo, perguntou quanto tempo eu achava que ficaríamos no acampamento. Eu tive um ano para digerir meu fracasso de 2017, e um dos meus principais objetivos para 2018 era aproveitar melhor meu tempo no acampamento. Respondi que ficaríamos de cinco a sete minutos, na pior das hipóteses. Ele respondeu “ok”.

Chegamos ao acampamento em 8h38min. Após sete minutos e uma troca completa de roupas (camisa, meia, tênis e vaselina), partimos de volta para a trilha.

Ainda tinha cerca de uma hora de luz do dia para aproveitar quando comecei a segunda volta. Em 2018, as voltas eram na seguinte direção:

  1.  sentido horário
  2.  anti-horário
  3.  anti-horário 
  4. horário
  5.  a escolher

A segunda volta, anti-horário

Na segunda volta, no sentido anti-horário, aumentei o ritmo para superar a primeira subida, até o livro 13 (ou o primeiro, no sentido anti-horário), e senti que era hora de colocar minha headlamp. O tempo estava mudando, havia muita neblina e começava a chover. Cliquei minha headlamp mas ela não acendeu. Tentei de novo… Nada.

Tentei mais uma vez, mas não funcionou. Sempre levo duas headlamps de 350 lumens e uma emergencial de 100 lumens. Tentei ligar a segunda mas ela também não funcionou. Isso nunca tinha me acontecido antes.

Peguei a lanterna reserva na mochila, mas de jeito nenhum ela seria suficiente para navegar na floresta à noite, e eu nem tinha baterias de reserva para ela. Eu já estava muito longe do acampamento para voltar e resolver este problema. O sol já estava quase posto, e minha corrida estava chegando ao fim.

Gritei por Guillaume e Ally, corredores que eu sabia que estavam próximos de mim naquele momento. Por sorte, Guillaume começou a assobiar de volta em resposta aos meus chamados, e conseguimos nos encontrar no escuro, no meio da floresta densa.

 

Eles me ofereceram o que tinham, mas não encontramos uma solução – cada lanterna funciona com um tipo específico de pilha, e tive que continuar com a minha pequena lanterna reserva. A partir dali, nos tornamos um time.

Algum tempo depois, encontramos um outro grupo de corredores, e um deles me emprestou mais baterias para a minha lanterna reserva. Pelo menos eu tinha um jeito de enfrentar as próximas 12 horas no escuro.

O epicentro da tempestade nos atingiu, e a visibilidade caiu para cerca de 30 cm. Estávamos na lama, na tempestade, no escuro, e eu só tinha uma lanterna pequena. Também sofremos muitos cortes pela vegetação e estávamos no limite da hipotermia.

Naquele momento, eu usava uma camiseta da lã merino de manga comprida, uma camiseta de manga curta de tecido tecnológico, um corta-vento, uma jaqueta impermeável, um protetor de pescoço, um gorro, um par de luvas grossas, shorts e leggings, e tinha vestido também minhas calças à prova d’água.

Lado positivo: minha mochila agora estava muito mais leve. Nossa equipe estava entre o “dream team” e os três patetas.

Passamos pelo famoso túnel da prisão, agora escuro e cheio de água. É tão longo que, se você não estiver usando uma headlamp, não consegue ver absolutamente nada em cerca de 25% de sua extensão. É um dos “testes” da Barkley Marathon, ver se você consegue enfrentar um túnel no escuro. Saímos do túnel e subimos a Rat Jaw mais uma vez, engatinhando cada passo do caminho.

Fomos eficientes nos trechos seguintes e, na melhor das hipóteses, conseguiríamos terminar a segunda volta em 13 horas – um número alto. Tomei a liderança, mas estava lutando muito com a falta de luz. Já tinha consumido minhas baterias extras, e a essa altura estava usando a lanterna reserva de Guillaume. Quebrei meu outro bastão de caminhada quase no mesmo lugar em que quebrara o primeiro e não vi uma placa, o que nos levou a um ponto fora da trilha.

Tivemos que repensar o caminho. Não estávamos avançando suavemente, e o relógio continuava correndo. Mas na neblina, erros são cometidos. Errei novamente o caminho por alguns graus, e mais uma vez ficamos perdidos procurando a trilha. Senti meu estômago pesado.

Localizamos a trilha com o nascer do sol, e novamente tomei a liderança. Sentia que estava brigando contra o relógio já na volta dois, em vez de só na volta cinco. Quatro porcos selvagens me expulsaram da trilha, mas sem me machucar. Concluímos a volta em 14h30min. Meu corpo inteiro estava dormente, mas não de dor, e sim de medo e frustração.

A tempestade tinha passado e a previsão do tempo para o dia era boa. Troquei minha roupa inteira e fui ao banheiro, mas havia muito em que pensar após aquela volta.

Para piorar, estava enfrentando o pior caso de assadura que já vivi na vida. Reapliquei a vaselina várias vezes mas estava piorando. Só vi qual era o problema quando tirei a roupa: estava inteiro coberto de lama, o que tinha criado um efeito “lixa”.

No acampamento, Linda, minha mulher, me deu um burrito de sushi e me levou até o portão para começar minha terceira volta. Tinha 12h15min sobrando antes do tempo limite de 36 horas para iniciar a quarta volta. Sabia que podia concluir a volta em 11h30min se aumentasse o ritmo, e estava focado.

Também decidi que minha direção favorita era no sentido horário, que seria a direção das minhas últimas duas voltas caso eu chegasse até lá. Tudo que eu precisava fazer era concluir minha próxima volta em 11h30min e deixar 12h45min no relógio para a quarta volta. Realmente acreditei que correr no sentido horário era mais rápido, e que ainda era possível terminar a prova.


A terceira volta, anti-horário (de novo)

 

Saí do acampamento e cheguei ao Rat Jaw 40 minutos mais rápido do que na primeira volta, onde havia muitas pessoas torcendo. Estava tendo problemas com a minha alimentação, me aproximando das 27 horas em movimento.

É uma luta manter a ingestão de calorias. Em um determinado momento, cheguei a por um gel na boca, mas senti que ia vomitar. Cuspi o gel de volta na embalagem, esperei a ânsia passar e de novo pus na boca, desta vez engolindo. 

Senti minhas pernas bem. A chuva tinha passado e eu estava indo bem. Só precisava me manter focado.

Cheguei aos próximos livros sem problemas, e calculei que estava mantendo um ritmo suficiente para fechar a volta com 11h45min. Eu teria de 7 a 10 minutos no acampamento antes de sair para a quarta volta, e cerca de 12h20min para fazê-la.

Pensei em muitas coisas, especialmente na sorte que tenho de ter uma família maravilhosa, e em quanto tempo eu e minha esposa já tínhamos investido nessa prova – antes de tudo, concluí-la seria uma vitória para nós. Faz dez anos que sonho em me tornar um concluinte da Barkley Marathon.

Pensei que me sentia bem, considerando que já havia se passado 32 horas. Era o melhor que eu tinha me sentido nesse ponto, apesar de nas minhas outras duas tentativas eu já estar na volta quatro com esse tempo de prova.

Pensava em tudo, menos no que eu DEVERIA estar pensando: no livro três. Alguns livros são mais fáceis do que outros, e o três é considerado fácil. O problema é que foi assim que encarei o desafio, e, quando vi, já tinha passado por ele. Continuei em frente antes de confirmar que realmente tinha passado pelo livro, então dei meia-volta e fui rumo à minha página perdida.

Após 10 minutos de subida, as coisas não pareciam mais tão claras. Peguei meu mapa, confirmei minha direção, subi mais um pouco e cheguei ao acampamento de Emory Gap. 

Pelo menos eu sabia onde estava. Fiz novos cálculos no mapa e tentei corrigir meu erro. Em mais ou menos 10 minutos, alcancei minha página no terceiro livro. Este erro tinha sido péssimo, mas não fatal. Foi o que aconteceu depois dele que realmente me “enterrou”.

Desci para o norte, acreditando estar indo para o oeste. Pensei que havia perdido uma intersecção e que estava ao sul de onde eu precisava estar. Preciso dizer que nunca tinha feito mais de 31 horas na Barkley sem dormir. Não sentia que estava privado de sono, mas agora não consigo explicar meus pensamentos naquela hora, depois da corrida. Senti vontade de vomitar quando vi quanto tempo já tinha passado. 

Fui em direção ao próximo livro e pensei que nem tudo estava perdido. Espantei uma dúzia de porcos selvagens com bastante barulho – eu estava atrasado e a última coisa de que precisava era de um ataque de um deles. Peguei minha página e segui rumo à penúltima subida em sentido anti-horário. O sol estava se pondo e minha lanterna, que tínhamos consertado no acampamento, já estava na minha cabeça brilhando, agora com 350 lumens.

Fiz um bom tempo para pegar minha última página. Sabia que precisaria chegar ao próximo acampamento em tempo recorde. Chequei meu relógio novamente, fiz mais contas, chequei o relógio novamente…. cheque-mate.

Eu sabia que mesmo que eu fosse um super-herói pelos próximos quilômetros, ainda chegaria cerca de 90 a 120 segundos acima do tempo permitido. Fui sem pressa em direção ao acampamento. Não queria que a Linda se preocupasse comigo após passar o tempo limite, mas também não estava com pressa para enfrentar o inevitável. Não estava pronto para sair da disputa, eu não tinha nem chegado à fase de alucinações!

Havia treinado para um esforço de 60 horas, não para um esforço de 36 horas. “Nem vou perder todas as minhas unhas do pé”, pensei. Há um indicador maior de fracasso na Barkley do que NÃO perder todas as suas unhas do pé? Provavelmente não.

A Barkley Marathon é um objetivo ao qual estou dedicado. Terminá-la é quase igual a quebrar recordes em outras provas, as coisas têm que dar certo, e em alguns anos parece que está tudo contra você. Quero registrar que este ano a corrida era possível, não tenho dúvidas, e mais de uma pessoa já a completou mais de uma vez. 

 

Eu acreditava ter as habilidades necessárias para completá-la também. Tenho a capacidade física, mas enquanto não eliminar os períodos em que fico “fora de mim” em 60 horas, a linha de chegada vai continuar distante. Como disse um amigo meu, “A Barkley Marathon vai encontrar suas fraquezas e explorá-las”.

Mas enquanto você mantiver sua cabeça erguida e seguir em frente rumo ao seu objetivo, você vai aprender a curtir e adorar a jornada, encontrar pontos positivos onde muitos só veem os negativos. Mesmo se você só cruzar a linha de chegada um pouco mais tarde do que você planejou. Mesmo que você só chegue ao seu destino alguns anos após o plano inicial.

*Por Gary Robbins

Redação

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