Os bastidores da incrível vitória de Yuki Kawauchi na Maratona de Boston

Atualizado em 03 de maio de 2018
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O japonês Yuki Kawauchi chocou o mundo ao vencer a Maratona de Boston, no dia 16 de abril. Muitos fãs do atletismo questionaram como um funcionário de uma escola pública de Saitama pôde superar atletas do calibre de Tamirat Tola, Galen Rupp e Geoffrey Kirui sem patrocinadores, treinando menos, descansando menos e com um trabalho de segunda a sexta-feira. Um relato feito por Brett Larner, que atua como uma espécie de representante informal de Kawauchi, indica que a vitória do até então melhor maratonista amador do mundo não foi obra do acaso. Muito pelo contrário.

Larner, americano que se mudou para o Japão para fazer uma pós-graduação, conheceu Kawauchi quando este ainda era um adolescente. “Desde o início, havia algo diferente sobre ele”, conta. A relação ficou mais estreita em 2011, depois que o japonês foi ao pódio na Maratona de Tóquio. Sem falar inglês, Kawauchi não sabia como lidar com o assédio da imprensa estrangeira e os diversos convites para disputar provas no exterior. A solução foi pedir a ajuda de Larner, que traduziria as mensagens em inglês e resolveria alguns trâmites. Foi o americano que intermediou a conversa que a reportagem da O2 teve com Kawauchi no fim de 2017.

Brett Larner (ao centro) acompanha Kawauchi em maratona disputada na Suíça, anos atrás

Alguns dias depois do feito épico de Kawauchi nas ruas de Boston, Larner descreveu em seu blog os bastidores da conquista do japonês. O texto traz uma profecia (“você nasceu para viver este dia”), uma análise minuciosa sobre o percurso da maratona, a preocupação com os outros favoritos à vitória e detalhes da estratégia traçada para que o melhor maratonista amador vivesse o seu dia de glória – e, finalmente, se rendesse ao profissionalismo. Confira:

Conhecendo o terreno

Em 2011, Larner já conhecia o potencial de Kawauchi em provas com muitas inclinações. Aos fins de semana, ele usava suas folgas para fazer longas rodagens em montanhas japonesas. Desde então, o americano dizia ao amigo que uma eventual vitória em Boston ou Nova York não era um delírio. “Se Meb [Keflezighi, campeão em Nova York em 2009 e em Boston em 2014] pode ganhar essas provas, não há razão para que você não possa”, disse.

A participação na Maratona de Boston, no entanto, nunca saía do papel em razão dos compromissos de Kawauchi na escola onde trabalhava. Um vídeo gravado com entusiasmo por Bill Rodgers, tetracampeão em Boston, convenceu o japonês a tentar a liberação para correr na segunda prova mais antiga do mundo.

Convencido por Rodgers, o japonês decidiu fazer uma preparação especial para correr bem em Boston. No dia 29 de dezembro de 2017, Kawauchi e Larner desembarcaram nos Estados Unidos com o objetivo de conhecer melhor o ambiente da major. Seria também o primeiro contato com o clima frio da cidade, que tanto incomodou outros maratonistas no dia da prova. “A respiração virava gelo no rosto no dia em que chegamos”, recorda Larner.

Na mesma noite de seu desembarque, Kawauchi jantou com Bill Rodgers, o homem que havia insistido para vê-lo em Boston. Ouviu do veterano uma história que mudaria sua vida. Ao relatar como havia sido sua vitória sobre o maratonista japonês Toshihiko Seko em 1979, alertou sobre a importância de desbravar antecipadamente os 42.195 metros que teria pela frente em quatro meses. “Seko era melhor que eu. A única razão pela qual o venci foi que ele não conhecia o percurso”, afirmou.

 

 

A estratégia

Larner não deixou o japonês esquecer de seus bons resultados em condições climáticas similares – na Maratona de Tóquio de 2010, na Maratona de Nagano de 2013 e na Maratona de Zurique de 2016. A confiança da dupla só era momentaneamente abalada quando o assunto era a concorrência. E havia um nome que causava preocupação especial: Galen Rupp, o vencedor da Maratona de Chicago em 2017.

“Sabíamos que tudo passava por Rupp. Era um medalhista olímpico, vice-campeão em Boston em 2017 e que vinha de uma vitória incrível em Chicago. Rupp é a principal razão para a existência do projeto Nike Oregon. É um produto de Alberto Salazar, da Nike e de toda sua influência tecnológica e financeira. O governador de Saitama, certa vez, comparou Yuki a Rocky, o personagem dos filmes. Como é que um corredor sem treinador, sem patrocinadores, sem orçamento, sem tecnologia e um emprego full time conseguiria ultrapassar alguém muito mais poderoso?“, questionou Larner.

 

Galen Rupp: a antítese de Kawauchi

 A resposta seria entender a estratégia adotada por Rupp e seu estafe. “Ficou claro que o pessoal da Nike Oregon só tinha uma abordagem: fazer o mínimo esforço possível até o km 30/32 e correr com força total a partir daí. Isso era tudo que eles tinham. Se Yuki pudesse neutralizar os últimos 10 km do Rupp, eles não teriam mais nada. A única questão era como”, acrescentou.

Feeling de campeão

Os dias que antecederam a Maratona de Boston encheram Kawauchi e Larner de otimismo. “Parece um presente de Deus”, dizia o americano, ao olhar para o céu chuvoso a quatro dias da prova. “Esta é a sua chance de mostrar ao mundo o que você pode fazer, Yuki”.

 

Chuva e frio: “presentes de Deus”

No reconhecimento do percurso, Kawauchi parecia seguro de sua estratégia. “Não estou preocupado com as descidas. Essa prova será decidida na segunda metade do trajeto“, confidenciou a Larner. Três dias antes da prova, a dupla percorreu os últimos 20 km do percurso, com Kawauchi acelerando nas subidas.

Nos instantes que antecederam a largada, Larner reencontrou um agente que não via há algum tempo e, durante a rápida conversa, ouviu o amigo perguntar qual era o objetivo de Kawauchi para aquele dia. A resposta pareceu pretensiosa e foi recebida com certa surpresa: “Correr a melhor prova de sua vida”.

No contato final entre Larner e Kawauchi antes da largada, uma última injeção de confiança: “Não há ninguém mais forte que você aqui. Seja esperto. Seja forte. Não tenha medo. Você nasceu para viver este dia.”

O plano perfeito

Kawauchi sabia que o frio faria com que os principais candidatos à vitória largassem com menos velocidade. Ele, no entanto, preferiu o caminho oposto, acelerando logo nos km iniciais.

“Largar devagar deixaria muitos atletas mais fracos no nosso pelotão. Eu queria me livrar deles o quanto antes”, explicou o japonês, após a prova.

Após um início fortíssimo, Kawauchi foi alcançado pelos principais rivais. E aí veio a segunda parte de sua estratégia: deixá-los correr direto contra o vento e a chuva. “Eu esperava que eles diminuíssem a velocidade depois de um tempo. Quando eles dessem essa brecha, eu estaria pronto para voltar.”

Em suas entrevistas, Rupp se dizia acostumado ao clima de Boston, já que a chuva e o frio o acompanhavam constantemente em seus treinos no estado do Oregon. Mas o americano acabou traído por suas próprias palavras e abandonou a disputa por volta do km 32.

Com Rupp fora do páreo, as atenções de Kawauchi se voltaram para Kirui, que liderava com alguma folga. Familiarizado com a reta final do trajeto, o amador voou baixo nos últimos km, sem sequer notar que havia ultrapassado Kirui. “Tudo o que eu pensava era terminar a corrida da melhor forma. Eu só olhava para frente.”

Kawauchi cruzou a linha de chegada com o tempo de 2h15min54s, deixando Kirui e o americano Shadrack Biwott com o segundo e o terceiro lugares, respectivamente. Terminou a prova boquiaberto, como se a ficha ainda não tivesse caído.

Maratona de Boston

Recepção de estrela

Após fazer história do outro lado do mundo, Kawauchi foi recebido como astro na volta ao Japão. Seu desembarque no aeroporto de Narita foi acompanhado por dezenas de jornalistas, que o atacaram assim que ele pisou no saguão.

Ainda sem acreditar em seu próprio feito, o franzino japonês confidenciou ao companheiro que o ajudava há tempo tempo: “Pareceu a mão do destino. Durante a corrida, fiquei lembrando do que você me disse. ‘Este foi o dia para o qual eu nasci’.”

Kawauchi na volta ao Japão: tratamento de estrela