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— Só nas ferramentas aí, hein, Alan? — um dos fisioterapeutas da seleção brasileira puxa assunto com o paraense que derrotou Oscar Pistorius, o mais famoso dos paralímpicos do mundo, no Estádio de Londres, em Stratford, na última edição dos Jogos Paralímpicos. Sem tirar os olhos, concentrado nos parafusos da prótese que ajusta, responde:
— É, tem hora que dá certo, tem hora que não dá…
Após quase 20 minutos sentado à beira da pista do moderno Centro Paralímpico Brasileiro, dentro do Parque Fontes do Ipiranga, na capital paulista, Fonteles vai testar os ajustes. E então uma cena raríssima ocorre: as próteses da marca islandesa Össur, consideradas as mais avançadas do mundo, se rompem, espalham carbono esfarelado pelo piso de tartan novinho e derrubam no chão uma das maiores estrelas do Brasil, uma potência paralímpica que almeja ficar entre as cinco com maior número de medalhas dos Jogos que começam no feriado de 7 de setembro.
Felizmente, o astro não se machucou. Está ainda um pouco acima do peso, ainda se livrando dos excessos provocados pelo “ano sabático” que gozou depois de se consagrar na capital britânica. “O corpo não é uma máquina. Passei 14 anos da minha vida correndo, quis dar uma parada.”
Os Jogos Paralímpicos eram pouco mais do que algumas notícias de rodapé dos jornais, ganhavam poucos segundos em telejornais. Isso até os Jogos de Atenas 2004. O Comitê Paralímpico Brasileiro, interessado em difundir o evento, pagou passagens e estadia na Grécia para que órgãos de imprensa que não estavam dispostos a investir cobrissem e narrassem as façanhas e as incríveis histórias de superação desses atletas.
Aos poucos, os veículos de comunicação descobriram que uma nação que conquista raros ouros e um punhado um pouco mais numeroso de bronzes nos Jogos Olímpicos vibrava com as vitórias bem mais abundantes de atletas paralímpicos com histórias sofridas, capazes de dar exemplo e lição de vida em quem chafurda no desânimo ou no comodismo.
Doze anos depois, nomes como os de Fonteles e de Terezinha Guilhermina já são bem conhecidos por quem tem algum interesse por esporte no Brasil. E os de novos personagens, como Verônica Hipólito e Júlio César Agripino Santos, vão tomando espaço.
Verônica, 19 anos, não tem o cansaço de Fonteles. O rosto sem vestígio algum de olheiras e o semblante despreocupado exalam saúde. E muitos repórteres que vão entrevistá-la, caso não tenham feito uma pesquisa prévia, têm dificuldades para identificar qual seria sua limitação. Educada e extremamente atenciosa, pede desculpas a cada vez que passa pelo repórter da O2, como se estivesse constrangida por treinar bastante, fazendo-o esperar pelo fim da atividade e o início da entrevista.
Uma rápida conversa com o assessor de imprensa esclarece: Verônica teve um AVC, o que lhe paralisou parte do lado direito do corpo — a mão não se fecha totalmente. A vaidade feminina da jovem está presente e, quando não está treinando, tenta escapar de olhares de estranhamento segurando permanentemente o celular. Nesses tempos de encantamento pelos smartphones, haveria estratagema mais convincente para parecer “normal”?
É com jeito meigo que ela profere frases que revelam uma maturidade incomum em jovens com 20 anos de idade.
Ambiciosa, a velocista nascida no ABC paulista deseja “apenas” o ouro paralímpico e o recorde mundial da classe T38 (paralisados cerebrais). “Quero correr na casa dos 12 segundos (nos 100 metros) e ter o melhor tempo do mundo. Há muitos pontos da prova nos quais posso melhorar. Agora é planejar e corrigir o que não está funcionando.”
O mundo com outros olhos
Terezinha Guilhermina está num ponto, o de estrela consagrada do esporte paralímpico brasileiro, que Verônica corre para alcançar. Dona de seis medalhas nos Jogos, sendo três de ouro, a veterana velocista de Betim festeja os novos tempos, a nova estrutura, os novos recursos, o novo ambiente que respira e a nova paisagem do CT, mesmo que não a enxergue.
O problema de Terezinha é uma improbabilidade estatística no conjunto da população. Mas ela é neta de primos de primeiro grau e filha de primos de primeiro grau. No seu caso, a improbabilidade é igual à probabilidade. Os pais dela, Teresinha de Jesus e Pedro Guilhermino, tinham 50% de risco de ter filhos com anomalias genéticas.
Cinco dos 11 filhos do casal foram acometidos por uma doença que se manifesta em apenas 40 mil pessoas no Brasil, a retinose pigmentar.
Lá no Centro de Treinamento, à beira da Imigrantes, Terezinha, que é Guilhermina por um erro do cartório encarregado de seu registro, é toda sorrisos. “Já estive em centros de outros países e passei muita inveja. Era um sonho surreal ter uma obra deste nível aqui. Tínhamos muitas medalhas de ouro em Paralimpíadas, mas estrutura amadora. Esse tempo agora passou.”
Passou também o tempo de aperto. E de folga no tênis. Depois de gastar a sola do seu par, de número 36, pegou emprestados os 42 do irmão Lidério e tinha que botar papel higiênico por dentro para preencher o espaço vazio. Mas isso foi há muito tempo, antes de Atenas 2004.
Na capital grega, Terezinha competiu com um guia da ABDC, a Associação Brasileira de Desportos para Cegos. A brasileira era a única atleta de sua prova, a da categoria T12, a correr acompanhada. Ela “enxerga” melhor sob o sol. Se o tempo fica nublado, corre preocupada por estar nas trevas e desacelera. Com a ajuda do guia, conquistou um bronze nos 800 metros. Foi a primeira peça de uma coleção histórica.
No ano seguinte, Terezinha fez parceria com Jorge Luis, o Chocolate, guia de outra corredora de sucesso, Ádria Santos. Juntos, os dois triunfaram em Pequim, com o ouro nos 200 metros, a prata nos 100 metros e o bronze nos 400 metros.
O relacionamento entre corredor paralímpico e guia, no entanto, nem sempre é um mar de rosas. Os dois se desgrudaram no fim de 2010. No Mundial de Christchurch, na Nova Zelândia, em 2012, Terezinha fez dupla com Guilherme Santana. Juntos, faturaram ouro nos 100, 200, 400 metros e 4×100 metros. Em Londres, Guilherme tropeçou e caiu, e a dupla perdeu a chance de brilhar nos 400 metros. Foram campeões paralímpicos “apenas” nos 100 e 200 metros. No Rio, Terezinha e seus novos guias, Rafael Lazarini e Rodrigo Chieregatto, podem conquistar mais glórias. Mas o nome da velocista mineira já está definitivamente cravado na história paralímpica.
Leão olímpico
Júlio César Agripino dos Santos também vê grande melhoria em sua vida, mesmo sendo portador de ceratocone, doença degenerativa progressiva que afina a córnea, aumentando o astigmatismo e a miopia e comprometendo a visão inexoravelmente.
Nascido em Itapecerica da Serra, na Grande São Paulo, 25 anos atrás, conseguiu arrumar emprego de auxiliar de serviços gerais em uma empresa de essências e aromas. Treinava no estacionamento das 4h45 da manhã às 5h45, pois pegava no batente às 6h. Seu campo de provas era o estacionamento da firma.
Numa das idas e vindas diárias rumo ao trabalho, na estação Capão Redondo da linha lilás do metrô, conheceu Marineide dos Santos Silva, a Neide, fundadora do Projeto Vida Corrida, que atua naquele mesmo bairro.
Não foi um evento raro. Neide, baiana de Porto Seguro, batalhadora de seu projeto social, já incorporou ao atletismo 360 atletas do Capão.
Com o empurrão da treinadora, orientação adequada, sua força física e disposição, Júlio obteve vaga nos Jogos e vai representar o Brasil. O estádio olímpico e a glória paralímpica estão ao alcance de um ex-agente de asseio à viação (aquele que lava chão de ônibus). “As limitações não vão me parar, não vão me diminuir como pessoa, como ser humano, não vão me colocar para baixo e não vou deixar o pessimismo me dominar. Pelo contrário, vou chegar à pista como um leão.”
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