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Eles dominam todas: das provas dos 800 metros à maratona. Os quenianos intrigam os fisiologistas e enfurecem os adversários.
Tímidos, quietos e velozes: assim são os atletas quenianos. Com passadas largas, olhar fixo, concentração constante e obsessão pela vitória, eles conquistaram as principais provas de longa duração do atletismo nos últimos anos. Desde 1968, quando Kip Keino levou a primeira medalha de ouro para o Quênia, esse povo da África Oriental tem sido o único vencedor na prova de 3 mil metros com obstáculos, sendo que, em 1992 e 2004, todos os pódios dessa corrida foram deles.
Hoje, o Quênia conta com quatro dos cinco melhores tempos da história da maratona reconhecidos pela Associação Internacional das Federações de Atletismo (Iaaf) — o único a destoar neste Top 5 é o etíope Haile Gebrselassie. O recorde mundial dos 42 km pertence a Patrick Makau desde 2011, quando o queniano venceu a Maratona de Berlim em 2h03min38s, superando a marca de Gebrselassie de 2h03min59s (hoje este é o terceiro melhor tempo da distância, já que o também queniano Wilson Kipsang correu a Maratona de Frankfurt, em 2011, em 2h03min42s).
A supremacia queniana nas corridas de longa distância tem causado espanto na comunidade científica mundial e inveja nos corredores de outros países. “O povo do Quênia vive em pequenas aldeias em altitudes superiores a 2.500 metros, o que faz com que eles tenham uma taxa de hemoglobina maior do que quem vive no nível do mar”, afirma o treinador Wanderlei de Oliveira (técnico de atletismo e maratona do Brasil e diretor da Federação Paulista de Atletismo quando da publicação da reportagem). É a hemoglobina que “carrega” as moléculas de oxigênio pelo sangue; quando presente em maior quantidade, ela aumenta a capacidade aeróbica. “A maioria dos atletas nasce em áreas rurais. Quando crianças, são obrigados a ir à escola correndo, percorrendo mais de 10 km entre ida e volta. Assim que eles são revelados para o atletismo, a maior motivação passa a ser a vontade de vencer e de divulgar o Quênia para o resto do mundo”, diz Oliveira.
Herança genética
A maior concentração de corredores de elite do Quênia reside na região de Rift Valley, mais especificamente na tribo dos nandi — povo conhecido por ser bastante competitivo e individualista. Esse grupo, que teve uma grande resistência à invasão britânica em 1890, tinha o costume de caçar. O homem da tribo que trouxesse mais animais tinha o direito de se casar com mais mulheres. Portanto, um corredor melhor tinha a chance de procriar mais e, dessa forma, os genes desse bom corredor foram mantidos. “Isso fez com que os talentos fossem filtrados e os membros da tribo fossem ficando magros e resistentes à fadiga”, conta Liane Beretta, doutoranda em fisiologia do exercício pela Universidade da Cidade do Cabo, na África do Sul.
Depois da dominação, os britânicos, visando a acalmar os ânimos da tribo, observaram a grande facilidade para correr dos nandi e resolveram introduzir o atletismo, construindo várias pistas. “Para os quenianos, correr é parte da infância. Crescemos correndo e não percebemos que, com pouca idade, já estamos treinando”, explica Felix Limo, queniano nandi, ex-recordista mundial dos 15 km. “Dessa forma, acabamos desenvolvendo habilidades específicas e, nas pistas, o bom desempenho vem naturalmente.”
A altitude pode até ser um fator favorável aos nandi, já que a tribo vive a 2.300 metros. Mas, segundo Liane Beretta, esse não deve ser considerado o principal fator, visto que outros locais de altitude, como Colômbia, Peru ou Nepal, não produziram os mesmos talentos. “A herança genética parece ser a principal causa da supremacia queniana, que apresenta características fisiológicas que favorecem a performance. Apesar do consumo máximo de oxigênio ser mais alto em corredores de longa distância brancos do que negros, estes conseguem trabalhar mais próximos de seu consumo máximo do que os brancos”, explica ela. “Outro estudo feito no laboratório da Universidade da Cidade do Cabo mostrou que as fibras musculares dos negros conseguem contrair e relaxar por mais tempo do que as dos brancos antes de entrar em fadiga.”
Coração e cabeça
Para o dinamarquês Bengt Saltin, diretor do Centro de Pesquisas do Músculo em Copenhague, Dinamarca, e autoridade mundial em biologia muscular, os quenianos possuem vantagens genéticas significantes. “Eles têm uma estrutura de músculos perfeita e uma grande capacidade de converter oxigênio em energia limpa para alimentar esses músculos”, justifica. “Fomos para o Quênia estudá-los e descobrimos que não só os corredores, mas também os jovens sedentários têm características musculares diferentes dos europeus e até dos nigerianos. Outro dado interessante é que os corredores quenianos não produzem amônia durante um exercício intenso. Quando eles correm na velocidade máxima, possuem a mesma concentração de amônia do que os corredores europeus em repouso. Como a amônia é um dos principais causadores da fadiga muscular, essa é mais uma mostra da diferença metabólica deles e uma indicação genética do ótimo desempenho.”
O que mais intriga o professor Saltin é o fato de os genes que fazem dos quenianos grandes corredores virem exclusivamente de suas mães. “Um presente hereditário”, conclui. Já Paul Tergat, um dos maiores corredores de fundo de todos os tempos, diz que o sucesso dos quenianos vem principalmente dos treinamentos fortes. “Não importa a distância nem a dificuldade, você deve treinar com o coração e a cabeça e tudo se tornará possível. Nenhuma nação treina tão forte quanto o Quênia. Só o talento não é suficiente.” O fã Wanderlei de Oliveira completa: “Corrida de fundo está para o Quênia assim como futebol está para o Brasil. A maioria dos atletas quenianos tem uma vida útil de dois, no máximo três anos, tempo que passam treinando e competindo, até estarem totalmente desgastados fisicamente”. O cerco parece estar se fechando para os atletas
Justiça ou “racismo”?
O domínio dos quenianos nas corridas de fundo gerou desconforto entre alguns atletas, principalmente americanos e europeus. Algumas provas americanas restringiram o número de participantes estrangeiros ou impuseram prêmios separados para atletas nacionais. A Bolder Boulder, corrida de 10 km no Colorado, EUA, restringiu o número de participantes estrangeiros a três e dobrou o prêmio para atletas americanos; uma corrida de rua de Nova Jersey excluiu os atletas quenianos; e um evento de 15 km na Flórida parou de oferecer dinheiro aos primeiros colocados depois de uma década sem vencedores americanos. “Acredito que isso seja racismo”, diz o queniano Robert Cheruiyot, tricampeão da São Silvestre.
“Esse tipo de restrição é contra a cultura internacional do esporte e não vai trazer benefício algum aos atletas americanos. Em 2002, venci uma corrida e ganhei US$ 2.500. O primeiro americano, que chegou bem atrás de mim, recebeu US$ 5 mil. Dessa maneira, como eles podem se motivar para correr melhor?”, questiona. Na outra ponta, mas sem medo das feras africanas, está o brasileiro Marilson Gomes dos Santos. “Os quenianos são a pedra em minha meia. Em toda prova em que estou bem, aparece um na minha frente. Mas agora vou ter de ganhar”, disse em 2003. E ganhou! Mesmo com os quenianos ainda mantendo a hegemonia nas grandes provas, Marilson venceu a Maratona de Nova York em 2006 e 2008.
(Matéria publicada pela Revista O2, edição 121, maio de 2013)
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