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Ao final da Meia-Maratona de Buenos Aires, no ano passado, a exatleta de elite e atual treinadora de ponta Cris Carvalho tinha motivos de sobra para comemorar. Aos 43 anos, 1h26min e o segundo lugar na prova. Cris obviamente comemorou o resultado — ainda que com alguma ressalva… “Eu já tinha feito 1h21min nessa mesma prova, mas eu tinha vinte e poucos anos. Está ótimo!”. Essa é Cris Carvalho. Sinônimo de competitividade. A velha história de não gostar de perder nem em treino. Mas sem estresse, apenas se valendo do instinto competidor para treinar melhor e tirar um pouco mais de seus alunos nas assessorias Projeto Mulher e Núcleo Aventura. “Mesmo no treino, um pouco de competição pode ser saudável”, diz ela. “Entrar num treino de velocidade com um monte de gente é divertidíssimo! E todos acabam fazendo um treino supralimiar importantíssimo para o coração, que resulta em longevidade vascular, maior metabolização de gordura…”
Cris entrou no endurance praticamente competindo. Na verdade, começou um pouco antes, pegando onda de bodyboarding. Mas, como todo paulistano que gosta de surfar sabe (e padece), ir para a praia apenas aos fins de semana não é só o sofrimento de passar cinco em cada sete dias sonhando com as ondas: não há condicionamento físico que resista. E começou a correr, primeiro para manter a forma — preocupada apenas com o lifestyle de beira de praia —, mas logo percebeu que levava jeito para a coisa. Eram tempos de caloura na educação física da USP, que anualmente era convidada a participar de uma prova de corrida de revezamento no Japão. “Meu teste de aptidão para aquela prova foi muito bom”, lembra ela. “E logo que entrei na faculdade acabei convocada para a seleção de atletismo.” Mesmo longe de seus laboratórios de genética, a USP acabara de criar um “monstro”.
Logo ela percebeu que correr era ótimo, mas que nadar, pedalar e correr era muito melhor — e ainda ajudava a matar o tempo entre uma aula e outra. “Aquele campus maravilhoso todo à disposição…” E aí Cris Carvalho deslanchou. Foram anos na seleção brasileira de triathlon, títulos brasileiros, sul-americano no duathlon, pódio no Ironman Brasil e uma notável 12ª colocação no Mundial, em Kona, Havaí. Foi nessa época que as corridas de aventura chegaram ao Brasil. Não havia por que não gastar um pouco de energia fora do asfalto, subir alguns morros, despencar de mountain bike, tentar o caiaque. “Mas isso não quer dizer que abandonei o triathlon, assim como não abandonei o bodyboarding. Tratase de agregar novos esportes.” Ao lado de seu futuro marido Zé Caputo e de outros triatletas, o time de Cris começou a se destacar nas provas de aventura. Uma das razões é que a então nova modalidade reunia aventureiros experientes na natureza selvagem, mas poucos tinham o preparo físico da turma de Cris. Em compensação, navegação com mapas e bússolas era novidade. “Éramos uma equipe extremamente forte”, diz ela. “E burra. Chegávamos entre os primeiros, até ganhamos algumas provas, mas fizemos muitas corridas percorrendo o dobro do percurso…”.
O que ela não gostava, mesmo, nas corridas de aventura, era a privação do sono, a história de fazer força por dias a fio sem tempo para dormir. “Sempre senti falta de dormir. Quando o Luigi nasceu, há sete anos, eu ainda fazia corrida de aventura, mas depois que o filho nasce, aí a mulher aprende o real valor do sono.” A necessidade cria oportunidades, e eventualmente desperta paixões. Cris descobriu então as corridas de montanha, especialmente maratonas e ultras. “Minha caixa de brinquedos ainda tem uma bicicleta de triathlon, uma mountain bike, um óculos de natação”, explica. “Mas hoje é inegável que me dedico mais às provas de trilha.” E com mais uma formidável sequência de resultados, como um sexto lugar geral nos 160 km de Mont Blanc e o recente título do Cruce de los Andes, meses atrás, aos 44 anos.
Uma força aparentemente inesgotável, a motivação sem fim para depois de mais de um quarto de século “nas cabeças” continuar com os olhos injetados, mirando única e exclusivamente o alto do pódio. Será possível que essa mulher nunca apresentaria sequer resquício de decadência? “Tenho consciência da minha idade, mas continuo amando dar o meu melhor.” E agora, mais do que antes, Cris Carvalho tem de dar o seu melhor. Não por pódios. Por sua vida. Flashback de volta a Buenos Aires: uma das razões de Cris Carvalho estar na meia-maratona argentina era acompanhar um grupo de alunos ligados a uma empresa de audiologia — alguns deles fonoaudiólogos, que recomendaram que sua treinadora fizesse uma pequena cirurgia corretiva de septo nasal. “Já ia aproveitar e retirar um nódulo do seio.” Veio a surpresa. O baque momentâneo. “Havia feito três mamografias por causa desse mesmo nódulo e todas deram negativo. A quarta deu positivo”, conta. Uma biópsia confirmou a presença de um câncer. O choque foi inevitável e, pior ainda, era a possibilidade de metástase. “Nessa hora, vem tudo na cabeça: o cabelo vai cair, vou perder o seio, filho pequeno para criar… Como é que um tumor benigno se torna maligno de uma hora pra outra?”, se perguntava inconformada. Pela primeira e única vez em todo o processo, Cris Carvalho chorou. E foi de raiva. “Se o primeiro exame mostrasse o resultado correto, eu já teria tratado!” A verdade é que, ela descobriu depois, a mamografia não é um exame conclusivo, e no seu caso o tumor estava muito bem “disfarçado”. A medicina nem os médicos são Deus, e Deus… Bem, quem somos nós para entender os desígnios de Deus? Dizem que Ele pode ser brincalhão, mas também dizem que jamais manda o frio maior do que o cobertor.
O câncer de Cris Carvalho atingiu os ossos. A boa notícia é que a medicação funcionou e a doença está absolutamente controlada. “Agora ela estará sempre comigo, é minha amiga”, brinca Cris. “Tenho de lidar com ela, como se fosse diabetes ou herpes.” Ao mesmo tempo, ainda que reconheça conviver com uma doença séria, em momento algum ela aceita portar-se como doente. “Não me vejo como doente, não tive momento algum de depressão. Sempre temos alguma coisa nos perturbando. Ontem foi a conta bancária no vermelho, outro dia o carro batido… Pra mim, hoje é o câncer.” O que perturbou Cris, mesmo, foi uma súbita queda de desempenho no esporte — previsível, aliás. Felizmente, o problema foi diagnosticado e, aparentemente, não é nada mais grave. “A medicação diminuiu muito o nível de ferro no meu corpo, e eu estava com anemia, mas a reposição já está sendo feita.” No mais, algumas mudanças trazidas pela “nova amiga” foram, paradoxalmente, positivas, algo como “os primeiros meses do resto de minha vida”. “Fiz uma faxina interior”, revela Cristina. “Repensei muita coisa, cortei o que não prestava, da alimentação às amizades. Adotei uma postura seletiva mais radical.”
O que acontecerá com a grande atleta Cris Carvalho nem ela sabe ainda. Seus planos incluem uma corrida nas Dolomitas, nos Alpes italianos, em julho e esquiar com a família em seguida. “Não acho que será o fim da linha para a minha carreira, mas pode ser, sim”, reconhece. “Não vou pedir para voltar a ser o que era, mas encontrarei outras motivações nas provas.” E até mesmo quando trata sobre decadência, esse fantasma que paira sobre todo atleta de alto rendimento, Cris não perde o bom humor — nem prazer de competir e louca vontade de viver. “Até nisso Deus foi generoso comigo: posso até tomar couro nas provas. Mas, pô, eu estou com câncer…”. No fim de semana anterior a esta entrevista, por exemplo, Cris ficou em segundo lugar numa corrida de 10 km no interior de São Paulo, e em seguida desceu a serra para surfar no domingo. E reclamou: “Estou muito fraca, o mar tinha ondas de 2 metros e quase fui expulsa”. Pódio no sábado, surfe de “responsa” no domingo. E se achando decadente. Essa é Cris Carvalho.
(Matéria publicada pela Revista O2, edição 121, maio de 2013)
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