Causos de corredor: histórias curiosas (e tensas) de amantes da corrida

Atualizado em 08 de junho de 2017
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No mundo da corrida, é comum planejar minuciosamente todos os passos antes, durante e depois dos treinos e provas: as horas de sono, os alimentos ingeridos, os trechos mais desafiadores no asfalto, a velocidade que deve ser mantida e até mesmo a roupa utilizada. Mas, como o esporte imita a vida, nem sempre as circunstâncias colaboram para que as previsões dos corredores saiam exatamente como o calculado. Algumas das experiências que você lerá a seguir pareceram traumáticas no momento em que aconteceram, porém renderam causos memoráveis.

A revista O2 saiu em busca de pessoas que, entre uma passada e outra, encontraram o imponderável correndo por aí. Embora esteja muito relacionada à disciplina e ao planejamento, a corrida, vez ou outra, proporciona perrengues divertidíssimos. Afinal, preocupar-se com seu pace é mais corriqueiro do que evitar o ataque de uma onça em plena floresta amazônica, concorda? Assim como não é todo dia que a refeição pós-exercício é servida em uma tribo indígena – e com uma tartaruga para ser digerida como no caso do ultramaratonista Carlos Dias.

Onça no meio do caminho
O analista de sistemas Márcio Villar é um dos milhões de brasileiros que, em determinado momento da vida, concluíram que não estavam felizes com o próprio peso. Aos 35 anos, o carioca de 1,73 metro ficou assustado ao ver a balança apontar 98 kg e começou a correr.

Degrau por degrau, começou com uma prova de 4 km e saltou para distâncias maiores. Disputou uma maratona e concluiu que queria mais. No fim de 2005, se inscreveu em sua primeira ultramaratona.

Figurinha carimbada nas provas longas, ele passou a ser um colecionador de causos. É com a descontração de um legítimo carioca que Márcio ri do episódio em que foi acuado por uma onça.

O encontro com o felino só foi possível porque ele decidiu, em 2012, disputar a Jungle Marathon, prova realizada na floresta amazônica em que corredores enfrentam rios, pântanos e um cansaço sobre-humano. O percurso habitual de 254 km não intimidou Márcio, que quis dobrá-lo – ou seja, rodar 508 km.

Eram sete dias dentro da mata, desviando de cobras e tomando cuidado com os jacarés. No quarto dia, deu de cara com uma onça e, assustado, encostou em uma árvore. “Só não enfartei porque sou botafoguense e estou acostumado com sofrimento”, brinca.

Sua primeira reação para afastar a onça foi gritar sem parar. Não adiantou. “Ela ia me acompanhando de longe e me cercou.” Márcio, então, fez o que melhor sabe: correu. Deu certo. A fuga bem-sucedida o faz apostar em uma teoria pouco confiável sobre o mundo dos felinos: “A onça só ataca o ser humano quando está com fome”.

A onça, por incrível que pareça, nem era sua maior preocupação na Jungle Marathon. Cinco anos depois, ele revela que teve mais receio de deparar com um catitu, animal semelhante a um javali e frequentemente confundido com um porco-do-mato. Para seu alívio, sua experiência com animais durante a ultramaratona se limitou a uma onça, algumas cobras, escorpiões, jacarés e arraias…

30 km de crocs
Em um país com 7 mil km de litoral, Fernando de Noronha consegue se sobressair como um dos conjuntos de praias mais belos do Brasil. A viagem dos sonhos do advogado paranaense Iduarte Ferreira Lopes Júnior para a ilha paradisíaca virou pesadelo no momento em que ele chutou acidentalmente um meio-fio e fraturou um dedo do pé.

Como se não bastasse o fato de atrapalhar a visita a Fernando de Noronha, a fratura causaria mais problemas dez dias depois. O triatleta, antes mesmo da viagem a Pernambuco, já havia confirmado sua participação em uma prova de corrida de 30 km na Guarda do Embaú, em Santa Catarina. Com inscrição e hospedagem pagas, decidiu encarar a viagem para o Estado catarinense, mas sabia que sua participação era improvável e imprudente. “Era impossível usar qualquer tipo de calçado.”

 

Ou melhor, quase qualquer tipo de calçado. Como calçar os tênis que comprou especialmente para a prova era sinônimo de muita dor, o advogado decidiu testar suas sandálias Crocs, uma opção um pouco mais folgada nos pés. As Crocs trouxeram algum conforto e a convicção de que correr 30 km de sandálias era uma possibilidade real. Dito e feito. “Parte do terreno era acidentado, o pé escorregava um pouco, incomodava. Depois dessa parte, o trajeto era na praia, predominantemente na areia. Aí foi menos doloroso. Chegou um momento em que meu pé ficou anestesiado. Escutei que eu era louco a prova inteira.”

No fim das contas, Iduarte finalizou os 30 km em 4h05min – mais de 30 minutos acima do que faria se não estivesse com um dedo fraturado – e levou uma bronca de seu ortopedista. “Fui totalmente imprudente”, reconhece.  

 

 

Do inferno ao céu no Chile
Em abril de 2015, a nutricionista Klara Rahmann estava de malas prontas para Santiago, onde disputaria a principal maratona chilena. Na bagagem, suplementos, roupas, tênis e os alimentos que separou para o café da manhã, já que é intolerante a glúten e lactose e não podia depender do que seria oferecido no hotel.

Um dia antes do embarque, veio o primeiro adversário: um torcicolo. Depois, soube que seus voos de ida e volta haviam sido cancelados. Uma longa negociação com a companhia aérea fez com que Klara embarcasse algumas horas depois do previsto.

Já no Chile, mais problemas: sua bagagem havia sido extraviada. Na véspera da maratona, sem contar com sua mala, com dores pelo corpo e frustrada com a maré de azar, a nutricionista praticamente desencanou da prova. Esqueceu os problemas com uma cerveja local, almoçou bebendo vinho e rodou pelos principais pontos turísticos da capital chilena.

Após a rota turística regada a álcool, voltou ao hotel e deu de cara com sua mala. No dia da prova, se atrasou e foi a última corredora inscrita a largar. Ainda assim, atingiu seu recorde pessoal: 3h40min. No embalo da endorfina, Klara partiu em busca de mais vinho chileno. Desta vez para celebrar…

Gastronomia indígena
O Brasil possui uma área de 8.515.767 km² e ocupa a quinta posição na lista de maiores países do mundo. As dimensões do País não intimidaram o ultramaratonista Carlos Dias, que decidiu cruzá-lo correndo. Foram 18.250 km percorridos em 325 dias, entre 2010 e 2011 – média de 56 km por dia. Parada dura, não?

Durante a preparação para a jornada, Carlos Dias foi avisado que encontraria de tudo em suas andanças. Deixou São Paulo disposto a dormir em lugares insólitos, a encarar a solidão em rodovias esburacadas e a comer o que lhe servissem. 

Na maior parte do tempo, Carlos Dias tinha a companhia de sua mochila e da escolta de policias rodoviários que conhecia nas estradas. Ao longo de um ano, experimentou situações extremas: foi recebido com pompa por prefeitos e, em outros trechos do País, apoiava sua rede na beira de um rio para repousar durante algumas horas. “Eu evitava comer coisas muito diferentes porque estava em uma jornada muito exigente fisicamente”, contou.

Em uma floresta de Roraima, não teve jeito. Acolhido por uma tribo indígena, Carlos Dias precisou provar um prato exótico. Os gentis índios lhe serviram uma iguaria: tracajá, uma tartaruga de coloração negro-azulada. “Todos os dias eu vivia algo novo. A cada dia era uma história diferente, uma pessoa nova que me acompanhava.” Nós não duvidamos, Carlos…

Atropelo na maratona
O Chile também traz recordações para a arquitetura Márcia Nascimento. Em 2011, durante a Maratona de Santiago, ela estranhou a quantidade de ciclistas acompanhando corredores. “Eu já vinha em uma expectativa para que desse tudo certo. De repente, aparecia um ciclista e eu tinha que desviar.” O incômodo ganhou proporções maiores no km 21. Márcia “driblou” uma bike e, logo em seguida, foi atropelado por um chileno desatento. Ouviu dezenas de pedidos de desculpas (“Perdón, perdón, perdón”, repetia o homem) e, mesmo com joelho e cotovelo sangrando, seguiu em frente. A adrenalina fez com que a arquiteta, aos trancos e barrancos, fosse até a linha de chegada. Além da medalha, ganhou uma coleção de ferimentos e marcas roxas…

*Ilustrações: Bernardo França