O ultramaratonista amador Cleber Isbin tem um currículo impressionante: apesar de correr há apenas 11 anos, ele já completou 18 maratonas (a mais rápida em 2h43min), a BR 135 (217 km), foi vice-campeão da Ultramaratona de Montevidéu (207 km), a Comrades, é recordista do Desafio Samurai da Mizuno Uphill e mais um punhado de corridas hardcore. Mas ainda nem todo mundo sabe que Cleber completou possivelmente a mais dura de todas as corridas com sucesso: do inferno das drogas e do álcool ao paraíso da endorfina.
Todavia, essa corrida de muitos obstáculos pode ser acompanhada passo a passo, no livro autobiografado Correndo das drogas, lançado no final de 2018. Ali, Cleber Isbin conta como foi essa jornada. Do tempo em que as noites só acabavam pela manhã aos treinos que começam antes de o sol nascer, um relato emocionante, honesto e extraído do coração e de lembranças que ajudaram a forjar um corredor obstinado e um ser humano que aprendeu que sempre há um novo capítulo melhor para ser escrito.
[…] Fiquei sabendo por acaso que no domingo seguinte (14 de setembro de 2008) haveria uma corrida de rua de 5 e 10 km simultaneamente em Ribeirão Preto. Era um circuito famoso de corridas que acontecia em várias cidades do Brasil. Fiquei empolgado em participar, pois na época eram raras as corridas de rua na região onde moro. Mesmo ainda sendo um fumante diário de cigarros, já conseguia correr 3 km na esteira em 15 minutos, então pensei: “Acho que consigo completar a prova de 5 km sem caminhar”.
Consegui fazer minha inscrição no último dia permitido, treinei com mais comprometimento durante a semana e fiquei três dias sem fumar cigarros antes da corrida. No domingo, acordei às 6h. Geralmente, apenas alguns meses antes, eu nem havia chegado em casa da noite anterior nesse horário.
Ao chegar às imediações do parque Carlos Raia, onde seria a largada da corrida, percebi que não havia vagas para estacionar o carro por perto. Aquilo me causou muita estranheza e por alguns instantes pensei que estivesse acontecendo outro evento por perto, uma rave de música eletrônica, por exemplo. Esse tipo de festa costuma atravessar a noite e terminar somente na manhã seguinte. Eu adorava ir a essas festas para me divertir e usar drogas. Obviamente, usava drogas todos os dias e em todos os lugares em que estava, seja em raves ou em jantar de Natal com a família.
Parei meu carro a alguns quarteirões e fui caminhando até o parque. Quanto mais eu caminhava, mais alto o som da rave ficava e mais pessoas caminhando na mesma direção com roupas esportivas apareciam pelo meu caminho. Ao avistar o parque, dei-me conta de que a música alta era para animar e divertir as centenas de corredores que aguardavam pela largada.
Fiquei surpreso com aquele ambiente e com a quantidade de pessoas que estavam lá e me fiz a seguinte pergunta: “Como é possível tantas pessoas acordadas em um domingo de manhã para correr?”. Ou a vida delas é bem chata ou são mais loucas do que eu sob efeito de drogas!
Era um domingo ensolarado. Homens, mulheres, jovens, adultos e idosos, todos estavam vestidos com roupas esportivas, com o número pendurado no peito. Alguns ansiosos, outros orgulhosos e todos felizes, emanando uma energia contagiante. Crianças brincavam de correr pelo parque, seguindo o exemplo dos pais que se aqueciam com um leve trote. Famílias inteiras compareceram para prestigiar a prova. Eu observava tudo aquilo e cada detalhe, afinal, era um mundo novo que jamais havia imaginado que pudesse existir.
O locutor avisou que a largada aconteceria em 10 minutos. Entrei no meio daquele corredor humano de acesso à largada, havia pessoas completamente diferentes umas das outras. Algumas eram extremamente magras, outras fofinhas. Algumas passavam cremes com cheiro de hortelã nas pernas, outras tomavam bebidas energéticas e eu pouco compreendia aquelas atitudes, observando com enorme curiosidade. “Atenção todos os atletas, 10, 9, 8, 7, 6, 5, 4, 3, 2, 1… valendo!”. Dei uma risada ao perceber que eu acabava de ser chamado de atleta!
Ao sair do parque, os primeiros metros de prova eram em descida. Corri rápido com medo de ser atropelado pela multidão que vinha logo atrás. Ao sair do parque, percorremos alguns quilômetros de subida, o que me deixou esbaforido e desesperado, com medo de não conseguir completar a prova. Nada como uma longa reta em descida na sequência para me acalmar e começar a sentir um pouco de prazer por estar ali correndo, sem saber para onde estava indo, nem o porquê, apenas correndo instintivamente.
Surgiram algumas retas planas e tudo aquilo começou a parecer que não teria mais fim. Ao avistar a placa de 4 km, não tive o pensamento padrão que a maioria dos corredores tem quando avista a placa que indica o último quilômetro da prova: “Ótimo! Só falta 1 km”. O meu pensamento naquele instante foi: “Estou encrencado, ainda restam mais 1.000 metros para percorrer”.
A vontade era de caminhar até o final, já não havia mais prazer naquele momento. Durante muito tempo em minha vida, procurei anestesiar minhas dores com o efeito de alguma droga e, naquele instante da corrida, meu hábito de fugir de minha realidade controversa me deixou em alerta, à procura de algo que pudesse aliviar ou mudar aquela situação de desconforto. Tomei um copo de água e joguei um pouco em minha nuca também, o que me proporcionou um alívio imediato.
A música do parque começou a soar cada vez mais nítida e alta em meus ouvidos, e a cada passada o sentimento de euforia neutralizava o meu desconforto. Virei à direita na última curva, entrei no parque e concluí a minha primeira corrida. Foram 5 km em 26 minutos. A sensação de ter construído a minha felicidade com um esforço que não sabia de que era capaz tomou conta dos meus sentimentos. Eu olhava para aquela multidão na linha de chegada, mas enxergava apenas a minha felicidade. Ouvia todo aquele barulho, mas escutava apenas o meu coração acelerado e uma voz dentro de mim que dizia: “Você conseguiu, você realmente conseguiu…”.
Aquilo tudo era muito novo em minha vida. A real sensação de felicidade, o prazer de me sentir alguém e fazer parte de algo, o sentimento de estar vivo e de ter encontrado algo que preenchia de prazer o vazio deixado pelas drogas.
Em meio a todas aquelas dúvidas de minha mente, perante minha nova maneira de viver, a única certeza que eu tinha naquele momento era a de que eu gostaria de repetir a experiência muitas outras vezes.
Um dia, ao abrir a minha caixa de e-mail, deparei com um convite para ser um dos condutores da tocha olímpica da Rio 2016, durante o seu percurso pelo país. Não conseguia acreditar nem entender o que estava lendo, tamanha a felicidade. Tratava-se de duas indicações feitas por pessoas diferentes, que relatavam a minha superação de vida por meio do esporte.
Na minha cabeça, poucas pessoas sabem ou admiram a minha história e, em momentos como esse, tenho dificuldade de entender o porquê de eu ser lembrado para algo tão incrível assim. Tantas pessoas merecedoras e justamente eu ter sido lembrado! Tenho uma forte tendência de gritar pelo fracasso e uma dificuldade incrível de me valorizar.
Passados alguns dias, após contar a boa notícia para todas as pessoas que encontrava pela frente, chegou um segundo e-mail da organização pedindo desculpas e dizendo que tinha havido um erro e que eu não havia sido um dos escolhidos para carregar a tocha olímpica na cidade de Ribeirão Preto. Obviamente, fiquei frustrado com todo aquele engano cometido pela organização do evento, e meus pensamentos de que não era merecedor se encaixaram na realidade daquele momento. Demorou, mas com o tempo aceitei que não era para ser eu um condutor da tocha e me coloquei em meu devido lugar.
A cada pessoa que me perguntava sobre qual seria o dia em que eu iria carregar a tocha, eu tinha que explicar todo o engano ocorrido. As pessoas se revoltavam com a organização, a ponto de eu pensar que estavam exagerando, afinal, é comum alguém cometer um erro.
A passagem da tocha olímpica tomou os noticiários nacionais, afinal de contas, era a primeira vez que o Brasil recebia os Jogos. A cada notícia eu sentia frustração e tristeza por saber que não poderia sentir a sensação de carregar o fogo olímpico que havia sido aceso na Grécia, o berço dos esportes no mundo.
Restando aproximadamente cinco dias para a tocha chegar à região de Ribeirão Preto, recebi um telefonema:
– Alô! É o Cleber?
– Sim, sou eu.
– Eu sou da organização do evento da condução da tocha olímpica e gostaria de saber se você tem disponibilidade e se gostaria de conduzir a tocha na cidade de Araraquara, próxima a Ribeirão Preto.
– Sim, sim, eu tenho disponibilidade, mas é de verdade dessa vez ou é trote?
– Trote, como assim?
– Porque eu recebi um e-mail me convidando e depois outro me desconvidando.
– Cleber, é sério, você será um dos condutores da tocha olímpica na cidade de Araraquara. Surgiu uma nova vaga e por isso estou ligando para saber se você gostaria de ir. Preciso saber o tamanho de roupa que você veste.
Confesso que fiquei bem na dúvida após desligar o telefone, mas com dúvida ou sem dúvida, eu iria para Araraquara no dia e horário combinados. Cheguei a Araraquara acompanhado por minha esposa, minha mãe e uma das minhas sobrinhas. Recebi o meu uniforme oficial e fui para meu ponto estratégico para receber a chama em minha tocha.
Era uma manhã de sol, havia muitas pessoas pelas ruas da cidade para acompanhar aquele momento único. Então, um dos condutores se aproximou com a chama olímpica e acendeu a tocha que estava em minhas mãos, foram 200 metros trotando com a tocha acesa em minhas mãos.
Corria o mais lento que podia para prolongar aquele momento ao máximo. Olhava para a chama e me enchia de felicidade, a representatividade daquele momento remetia à grandeza que o esporte tem para mim, tudo o que fez e continua fazendo, a descoberta de uma nova vida por meio dessa chama que é o esporte, que veio iluminar um novo caminho.
Diferentemente das edições anteriores da Uphill Marathon, em 2016 foi anunciado pelos organizadores um novo desafio da prova. Tratava-se do Desafio Samurai, que consistia em subir a Serra do Rio do Rastro em duas etapas. A primeira consistia em uma corrida de 25 km pela manhã (largada às 8h), terminando a prova no fim do alto da serra. A segunda etapa consistia em correr uma maratona de 42,195 km pela tarde (largada às 15h), terminando no mesmo local da manhã, no alto da serra.
Para poder participar do desafio eram exigidos ótimos tempos em provas anteriores no currículo do atleta. Depois de avaliados os pré-requisitos, o atleta deveria cumprir as duas provas em menos de 6 horas na soma dos tempos das provas de 25 km e 42 km, caso contrário seria desclassificado automaticamente.
A prova estava marcada para acontecer no início de setembro. No dia 30 de maio, após algumas semanas sem correr, tratando de uma lesão e com 70 kg, meu maior peso desde que nasci, iniciei os meus treinos e a dieta low carb hight fat, que se resume, de maneira bem simplista, em comer muitas verduras e legumes acompanhados de um pouco de carne com gordura, ou seja, apenas alimentos naturais. Portanto, pouco carboidrato e muita gordura animal.
Além dos treinos físicos de corrida, academia, pilates e natação, eu estava convencido de que, se quisesse alcançar algo mais, deveria fazer muito mais em meus treinamentos. Foi então que me surgiu a ideia de me dedicar também ao treinamento mental.
É realmente um treinamento, evoluía cada vez mais, quanto mais praticava. O livro Em Busca de Excelência, de Terry Orlick, tornou-se o meu livro de cabeceira. Tudo o que dizia eu colocava em prática nos meus treinamentos, para conseguir aumentar a minha resiliência mental durante os momentos difíceis e dolorosos de uma prova longa e trabalhosa como o Desafio Samurai.
Pude aprender, entre outras coisas, que treinar a mente é ao mesmo tempo tomar conhecimento do corpo e da mente e prever as decisões a serem tomadas nos momentos imprevisíveis que poderiam fugir ao meu alcance.
Foi bom saber que um momento ruim em uma prova ou na vida não é para sempre, e que o sofrimento de hoje me fortalece para o dia de amanhã. Foi importante compreender que o dia de hoje é a minha melhor oportunidade de realizar um ótimo treino com qualidade e prudência, e que o descanso no momento certo pode contribuir mais que um treino forte no momento errado.
Como o desafio seria realizado praticamente em trechos de subida, treinava três dias por semana em subidas pesadas. Na terça-feira, o treino era em uma subida muito íngreme, de 400 metros. Subia em velocidade rápida e descia em velocidade lenta 35 vezes sem parar. Na quinta-feira o treino era em uma subida muito íngreme, de 1.000 metros. Subia em velocidade rápida e descia em velocidade lenta 12 vezes sem parar.
E no sábado realizava os treinos longos, de aproximadamente 35 km, em estradas de terra com o máximo possível de subidas e descidas. Treinei todos os dias da minha preparação. Muitas vezes realizava dois treinos no mesmo dia, um de corrida, outro de academia, ou pilates, ou natação. Variava muito. A minha única meta era concluir o desafio abaixo de 6 horas, esse pensamento era meu foco diário.
Cada dia de treino era uma guerra para vencer a preguiça e buscar motivação dentro de mim. Nenhum dia foi divertido e prazeroso durante os treinos, mas, após terminar cada treino, o prazer chegava em doses cavalares.
No final da preparação de três meses, havia emagrecido 10 kg. Meu corpo estava forte e a minha mente preparada para suportar as piores situações que eu pudesse imaginar durante a prova. Carregava comigo que qualquer atleta inscrito neste desafio poderia ter treinado o mesmo tanto que eu, porém ninguém havia treinado mais do que eu.
Ao embarcar para Santa Catarina, eu me sentia calmo e quase não pensava mais em como poderia ser a minha prova. Estava bem relaxado e aproveitando cada momento para fazer novos amigos corredores, seja no voo até Florianópolis ou no ônibus até Criciúma. Era noite de quinta-feira, o clima estava bom, em torno de 21 °C, mas a minha expectativa era a de que o frio chegasse até sábado, o dia da prova.
No dia seguinte, fomos até a feira para retirar o kit de competição e rever os amigos corredores. Mesmo lá, tirando fotos com as pessoas e com o meu kit em mãos, o meu pensamento estava apenas no prazer de estar ali, naquele ambiente amigável e gostoso.
Na noite de sexta-feira, fomos comer a tradicional massa do dia que antecede a prova. A opção de comer carboidratos na véspera de uma prova é para conseguir realizar um estoque de glicogênio no organismo, que é revertido em energia no dia seguinte, durante a prova. Nessa noite, tive um sono perfeito e revigorante. A ausência de ansiedade para competir me permitiu dormir muito bem.
Ao acordar no sábado, vesti a minha roupa de competição e desci ao saguão do hotel para tomar um pequeno café da manhã: uma banana e uma fatia de pão de fôrma com presunto e queijo, acompanhados de um copo de suco de laranja.
Meu amigo Rangel, de Ribeirão Preto, também estava em Criciúma. Ele conseguiu realizar a sua inscrição após um convite dias antes da prova para o Desafio Samurai. Rangel havia alugado um carro e me deu uma carona até a cidade de Lauro Muller, onde seria a largada da prova de 25 km pela manhã, próximo de Criciúma. Combinamos de retornar juntos a Criciúma após a prova. Teríamos que almoçar rápido, descansar e retornar para a largada da maratona às 15h, na cidade vizinha de Treviso.
Ao chegarmos à concentração de corredores para a largada, encontramos alguns outros amigos e nem aquecemos, apesar do friozinho matinal que fazia por ali. Pude descobrir um a um quem estaria participando do desfio Samurai. O nível dos atletas estava bem alto, comparado ao meu nível de performance, pois os resultados anteriores em maratonas e ultramaratonas daqueles atletas eram quase todos bem melhores que os meus, o que me fez voltar o meu foco em fazer o meu melhor para conseguir completar o desafio dentro do tempo limite de 6 horas e esquecer a competição entre os outros adversários.
Como era a primeira vez que o desafio seria realizado, ninguém sabia muito o que esperar, nem qual a melhor estratégia a seguir. Decidi minha estratégia minutos antes da largada. Considerei:
“Vou fazer a minha prova sem me preocupar com o desempenho dos outros atletas, não posso me trair e deverei respeitar o meu ritmo de prova. Não vou ficar olhando o meu tempo nem o meu ritmo no relógio, seguirei apenas os sinais do meu corpo, tentarei correr um pouco forte, porém, próximo da minha zona de conforto. Não posso esquecer que serão 67 km ao todo e que terei que reservar energia para subir a serra duas vezes, sem caminhar”.
Largamos! Os primeiros metros eram planos, o que me ajudou a aquecer o corpo tranquilamente. Logo no início, meu amigo Rangel já estava ao meu lado. Ele é um excelente corredor, com tempos ótimos e bem melhores que os meus em maratonas planas.
Em seguida, começaram as duras subidas e fomos correndo juntos naturalmente, pois a minha estratégia estava traçada. Se ele acelerasse além do ritmo em que me propus a correr, eu não iria acompanhá-lo mais. Após o décimo quilômetro, antes de chegar à serra, o sol abriu fortemente.
Estávamos em um bom ritmo e começamos a realizar muitas ultrapassagens. Ao chegar à serra, estava me sentindo muito bem e naturalmente comecei a atacar as subidas. Meu amigo ficou para trás e eu já estava brigando pelo terceiro lugar na prova quando comecei a sentir câimbras na panturrilha pelo grande esforço para subir a serra sem andar. Reduzi o ritmo para que as câimbras não voltassem. Corria no limite. Sentia que se apertasse um pouquinho só o ritmo, as câimbras voltariam a travar os meus músculos da panturrilha esquerda.
E foi assim, administrando o meu corpo, que cruzei a linha de chegada da prova de 25 km em 1h55min, em quinto lugar no geral e o quarto melhor do Desafio Samurai.
Meu amigo chegou alguns minutos depois, pegamos o ônibus para descer a serra de volta, buscar o carro em Lauro Muller e seguir por mais alguns quilômetros de volta ao hotel. Durante a viagem de volta, só pensava na minha panturrilha dolorida após os espasmos musculares sofridos no momento da câimbra. Meu receio era de que essa dor me impedisse de correr a maratona que teria início em algumas horas.
Chegamos a Criciúma, compramos gelo em um posto de gasolina e fomos direto para o restaurante do hotel, comer uma lasanha. Em seguida, deitei um pouco enquanto a minha perna ficava estendida sobre uma sacola de gelo. Meu sentimento de paz era tão grande que cheguei a adormecer por alguns instantes. Acordei, coloquei a minha outra roupa de competição e partimos de carro para a largada da maratona em Treviso, às 15h.
Mesmo que tivesse realizado um bom tempo de 1h55min nos 25 km, a minha preocupação era grande minutos antes da largada, pois teria que completar a maratona em no máximo 4h05min. Esse tempo não chegava a ser algo muito difícil para mim, porém eu havia corrido 25 km pela manhã e subido a serra inteira. Era imprevisível saber se o meu corpo responderia bem ou não, se as câimbras voltariam ou não, se a dor na minha panturrilha me incomodaria ou não.
Tudo isso me deixou um pouco tenso antes da largada, mas, ao começar a prova, retomei o controle da minha mente. Era como se eu dissesse para mim mesmo:
“Foque o ritmo, igual ao da manhã, corra solto e próximo da zona de conforto para que sobre uma boa energia na subida da serra. Seu único momento para realizar algo é agora, neste quilômetro, concentre-se na sua postura e economize ao máximo a sua energia sem perder a potência”.
É interessante quando o corpo tenta mandar na mente, e a mente retruca, mostrando quem realmente manda no organismo.
Os primeiros 10 km foram quase todos em subida, estávamos correndo em uma fila de quatro corredores para nos escondermos do vento contra, sendo que dois desses corredores são exímios atletas de triathlon. A cada momento nos revezávamos na dianteira da fila com o rosto ao vento, uma prática comum entre os atletas de triathlon, principalmente na modalidade do ciclismo. Quem vai em primeiro na fila gasta mais energia, resultado do contato com o vento no sentido contrário. Sabendo disso, estávamos realizando esse revezamento naturalmente, sem combinar nada, apenas entendíamos que a tática seria boa para nós todos.
Ao chegar a Lauro Muller, restavam apenas 25 km novamente e uma serra dificílima pela frente. Para a minha surpresa e de muitos outros, o trajeto para a maratona havia sido mudado e tivemos que correr 2 km a mais por dentro da cidade. Nas edições anteriores não houve essa parte, o que levou a maratona a se transformar em uma ultramaratona, uma vez que foram 44 km no total da prova realizada no período da tarde.
Ao sair de Lauro Muller, o nosso grupo já contava com cinco atletas. Iniciamos uma forte subida e eu estava na frente da fila puxando o ritmo do grupo. Tomei um gel de carboidrato nesse momento e, sem perceber, o meu ritmo aumentou o suficiente para impedir que os outros quatro atletas me acompanhassem. Quando percebi, já estavam distantes. Ultrapassei, também, o atleta que havia vencido a prova de 25 km no período da manhã com 1h44min e que, obviamente, também estava disputando o Desafio Samurai.
O plano seguia firme, sem alteração. Estava me aproximando da serra e o sol já começava a se pôr, mas eu precisava correr sozinho com o rosto ao vento. Nos primeiros quilômetros, após iniciar a subida da serra, ultrapassei dois atletas. Um deles havia chegado em segundo lugar na prova de 25 km da manhã e também era meu adversário no Desafio Samurai. O outro era um atleta profissional muito conhecido nacionalmente, vencedor de inúmeras maratonas no Brasil e nos EUA. Ambos já estavam caminhando no pé da serra.
Passei por eles em ritmo contínuo, passos curtos fortes e rápidos. Superava a serra a cada metro, quando, ao fazer uma das inúmeras curvas que contém a Serra do Rio do Rastro, uma mulher da organização da prova gritou para mim: “Vai lá, terceirão, você é o único dos três que não está caminhando”.
Naquele momento meu corpo e mente explodiram como um vulcão em erupção, uma mistura de sentimentos de euforia, alegria, coragem e autoconfiança tomou conta de mim. Estava muito feliz por estar na terceira colocação, o que me permitiria subir ao pódio da maratona entre os três primeiros. Eu olhava para trás a cada curva e não via ninguém, nem o segundo colocado. O sol já havia se posto, a serra estava toda iluminada por postes e coberta por uma nuvem de fumaça de neblina. Vencia metro a metro daquelas intermináveis subidas, passo a passo, curva a curva. Parecia que o sofrimento não teria fim.
Ao me aproximar da penúltima curva da serra, avistei um homem alto vestindo calça, parado num canteiro e gritando: “Eu sabia, eu sabia que era você com essas pernas tortas. Você é ‘foda’, moleque, ‘vamooo’, ‘vamo monstrãoooo’!”.
Não sabia se ria, respirava ou chorava de emoção, pois era meu querido amigo Léo, que mora em Curitiba. Eu o conheci na primeira oportunidade que tive de disputar essa mesma prova em 2014. Ele gritava e corria durante alguns metros ao meu lado me oferecendo água. Eu não conseguia nem beber, de tão ofegante que estava. Antes de se despedir, ele deu um último grito: “Você é o terceiro colocado no geral da maratona e o primeiro dos Samurais até agora!”.
Foi então que me dei conta do que eu estava prestes a realizar naquele momento. Acelerava com passadas firmes e, ao tocar com meus pés no chão, eu sorria e tentava respirar. Eu acabava de subir a serra no mesmo dia, duas vezes, sem caminhar. No último quilômetro de prova eu já não conseguia pensar em mais nada, muito menos identificar o que estava sentindo. A moto da organização se aproximou, verificou o meu número de peito e anunciou pelo rádio aos outros membros da organização: “Número 1215 chegando em alguns minutos na terceira colocação, o número dele é dourado, portanto ele é do Desafio Samurai também”.
Aos poucos, a voz do locutor da prova foi se aproximando cada vez com mais nitidez, até o ponto em que pude ouvir e entender o meu nome. Na última curva deparei com as luzes do pórtico de chegada e com muitas pessoas aplaudindo em meio àquela noite fria no alto da serra.
Eu estava confiante de que tinha feito um excelente treinamento, mas, apesar disso, buscava uma explicação para tudo aquilo estar acontecendo. Não entendia que era merecedor. Após tanto tempo abaixando a cabeça para as pessoas, sentindo-me sempre inferior, acreditava que aquilo não poderia acontecer com alguém que veio lá do submundo das drogas, da beira do abismo, da vergonha infinita. Mesmo em um dos momentos mais felizes da minha vida, o uso de drogas ainda me provoca dores e medo do novo, não queria me permitir sentar à mesa daquele banquete de felicidade que havia conquistado, pois já estava habituado a colher as migalhas que restavam da vida.
“E lá vem ele, para cruzar a linha de chegada em terceiro lugar na maratona, com 3 horas e 29 minutos, Cleber é o primeiro dos Samurais a completar a prova”, gritou o locutor.
Chorava e vibrava ao mesmo tempo, eu me senti especial para mim mesmo naquele momento único da minha vida. Minutos depois veio a confirmação e a entrega dos prêmios no pódio.
Sim, eu realmente havia realizado aquela façanha. Entendi, então, que sim, eu era digno de sentar à mesa daquele banquete de felicidade que construí dentro de mim após tantos anos de esforço. Sim, eu havia realizado o meu grande sonho!
Não o sonho de ser campeão pela primeira vez ou de ter ganhado uma viagem para a Holanda com todo o pacote de viagem pago, mas o sonho de poder olhar para mim e me sentir orgulhoso de ser quem eu sou e da história de superação que carrego comigo.
A minha doença permanece comigo, mas só por hoje decidi tratá-la e me permitir viver normalmente em busca de novos sonhos. Afinal, o mais difícil em minha vida é não usar drogas hoje. O sabor da vitória é a consolidação de muito esforço e da coragem de tentar!
Em 2015 meu pai foi diagnosticado com câncer na medula óssea, um baque para toda a família. Dias depois da notícia, ele iniciou o tratamento agressivo com quimioterapia, com terríveis efeitos colaterais. Foram dias difíceis para nós da família, sobretudo para ele.
Durante esse período eu estava me preparando novamente para correr a maratona de asfalto em subida mais difícil do Brasil, a Uphill Marathon. Eu havia feito uma ótima preparação, mas meu tempo de conclusão de prova foi muito ruim comparado ao do ano anterior. Meu treinador imediatamente me informou que as preocupações que eu vivia naquele momento com os problemas de saúde de meu pai fizeram com que o meu corpo perdesse a harmonia com a mente, resultando na queda de meu rendimento esportivo.
Passaram-se alguns meses, o tratamento havia sido um sucesso e meu pai estava bem novamente. Como forma de agradecimento, decidi correr da porta da minha casa até a Basílica de Aparecida pelo caminho da fé.
Trata-se de um caminho por estradas de terra em 90% da sua totalidade, passando pelos estados de São Paulo e de Minas Gerais. Pelo caminho da fé, os peregrinos seguem as setas amarelas e placas para chegarem a Aparecida. Existem diversos pontos de partida e apenas um ponto de chegada, na Basílica de Nossa Senhora Aparecida, na cidade de Aparecida do Norte.
Ao programar e planejar a minha jornada, cheguei ao número de 550 km de distância a serem percorridos da minha casa até a Basílica pelo caminho da fé. Tive a ideia de vender cada quilômetro dos 550 e com o dinheiro pagar as despesas de viagem, como pousadas e alimentação. O restante seria doado a uma ONG de crianças carentes de Jardinópolis. Pessoas do Brasil inteiro participaram das doações, e o dinheiro foi repassado à ONG Ciranda Viva.
Era o verão de 2015. Na segunda quinzena do mês de dezembro, dezenas de crianças da ONG realizaram uma grande festa na praça central de Jardinópolis, com apresentações culturais e uma grande transmissão de carinho e coragem. Às 15h iniciei a minha jornada. Saí da minha casa apenas com a roupa do corpo (camiseta, short, meia e tênis) e uma mochila pequena com reservatório de água, outra troca de roupa, algum dinheiro e um cartão de crédito, caso surgisse alguma emergência.
Percorri uma média de 50 km por dia, correndo em ritmo bem leve durante o período de luz solar. No quarto dia, na cidade de Vargem Grande do Sul, no estado de São Paulo, com 200 km percorridos, senti as dores de uma lesão em minha perna. Procurei um hospital e fiz alguns exames de raios X, para garantir que pudesse continuar sem preocupações. Embora as dores aumentassem a cada minuto, pensava em dores normais resultantes da grande quilometragem que eu vinha percorrendo durante quatro dias.
Quando recebi o diagnóstico do médico, meu mundo veio ao chão. Ele me disse que deveria encerrar a minha jornada e que, se continuasse, haveria o risco de agravar a lesão e eu ter que passar por uma cirurgia. Foi muito dolorido e frustrante receber aquela notícia, afinal eu estava correndo por mim, pelo meu pai e pelas crianças da ONG. Naquele momento, não poderia dar mais nenhum passo adiante pelo caminho da fé até Aparecida. Foi uma decisão difícil, meu corpo dizia “pare” e minha mente dizia “prossiga”. Parei.
Um ano depois, me reorganizei, juntei dinheiro e, na mesma época do ano, saí da minha casa da mesma maneira que no ano anterior e parti correndo lentamente até Aparecida pelo caminho da fé. Nos primeiros dias eu já conhecia o caminho que estava percorrendo em meio aos canaviais paulistas, mas, depois de passar pela cidade de Vargem Grande do Sul, tudo era novo. O caminho é muito bem organizado e estruturado para receber os peregrinos que vão caminhando, de bicicleta ou até mesmo a cavalo. No meu caso, fui correndo.
As pousadas cadastradas no caminho da fé oferecem janta, banho, pouso e café da manhã, tudo por um valor bem acessível se comparado a qualquer outra pousada ou hotel. Ao iniciar o caminho, é cobrado um valor simbólico de R$ 10 e o peregrino recebe uma espécie de passaporte para ir carimbando em cada pousada em que decidir dormir. Esses carimbos confirmam os dias e locais por onde se passa pelo caminho da fé.
Ao chegar ao estado de Minas Gerais, as subidas e descidas pelos morros se tornavam cada vez mais íngremes e frequentes. Quando encontrava algum peregrino caminhando, eu fazia questão de parar de correr e caminhar com ele por alguns minutos, para ter a oportunidade de conhecê-lo. Eram conversas de pessoas que estavam em paz e felizes, e aquilo me enchia de entusiasmo para seguir em frente. Era uma troca de energia maravilhosa entre pessoas que estavam em estado de graça.
Havia pessoas completamente diferentes umas das outras, muitas vindo de longe, de ônibus até algum dos pontos de partida do caminho. Outros eram de alguma região próxima, pessoas simples, pessoas financeiramente ricas, médicos, trabalhadores rurais, jovens, septuagenários, mulheres, homens etc. Todos com uma história de vida diferente e cada um com o seu motivo para peregrinar pelo caminho da fé.
Um fato chamou a minha atenção. Muitas pessoas estavam fazendo o caminho pela segunda, terceira ou até mesmo pela décima vez, alegando que o prazer de fazer o caminho era tão grande que desejavam aquilo novamente para elas, uma espécie de vício.
Após 12 dias pelo caminho da fé admirando as paisagens mais deslumbrantes que eu havia visto até então, cheguei a Aparecida. Na Basílica, recebi um certificado de peregrino. Foram 45 km por dia, em média, inúmeras amizades novas, algumas unhas a menos e um sentimento de paz revigorante que tomou conta de mim. Quando foi emitir o meu certificado de conclusão, a senhora da secretaria disse: “Seu certificado é de peregrino ciclista?” “Não, eu vim correndo.” “Correndo? É a primeira vez que alguém chega aqui e me diz que veio correndo.”
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