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Como um dos países mais pobres do mundo, sem tradição em esportes olímpicos, adotou — e dominou! — a corrida de longa distância? O que faz dos etíopes tão especiais e tão vitoriosos naquela que para o autor de Correndo com os etíopes talvez seja a modalidade mais simples de todas? Em busca dessas e de outras respostas, o corredor, treinador, escritor, bacharel em esportes pela USP (mais cinco anos de nutrição na mesma universidade) e colunista da O2 Danilo Balu visitou algumas vezes a Etiópia.
O resultado dessa “investigação turística” é Correndo com os etíopes, terceiro livro sobre alimentação e treinamento para corrida, depois de O nutricionista clandestino (2015) e O treinador clandestino (2016). Balu conviveu com corredores dos mais variados níveis técnicos e idades, e chegou a interessantes e surpreendentes conclusões. O livro, na íntegra, pode ser adquirido no blog recorrido.com . Mas só para nos deixar com água na boca, Danilo liberou esta “palhinha” de sua aventura etíope: o primeiro treino com os locais!
[…] Era para treinar em Adis Abeba com locais aspirantes a profissionais que eu tinha pego um voo apenas uma semana depois de correr minha quinta maratona. Era para ver o que os etíopes fazem que os deixa tão velozes quanto os… etíopes. Haveria algum segredo? Alguma metodologia secreta ou inovadora? Algo na dieta deles que seja tão diferente? Seria fugir de leões ou correr descalço até a escola na infância o método? E nos pés? Correriam eles descalços?
Você encontra pessoas do mundo todo, treinadores e atletas, tentando descobrir no Brasil os segredos que fizeram do nosso futebol pentacampeão mundial. Quando falamos em basquete, os EUA são um destino certo. Já a fama do talento e da competência africana nas corridas de longa distância já fez muita gente se aventurar principalmente aos dois maiores destinos quando falamos de atletismo: Quênia e Etiópia, celeiros mundiais de fundistas.
Então, se eu quisesse aprender com os melhores do mundo, havia chegado a hora!
Bom, para deixar as coisas bem claras: apesar de existirem leões na Etiópia, essa é uma piada feita com eles e quenianos que chega a ser ofensiva. É como dizer que pegamos ônibus sentados ao lado de macacos no Brasil e moramos em casas em árvores. Na Etiópia não são muitos os casos de corredores bem-sucedidos que cresceram correndo até a escola descalços. Haile Gebrselassie, o maior nome ao lado de Abebe Bikila, diz que fazia isso, mas esta parece ser uma anedota mais isolada e queniana do que etíope.
Então deve ser algo no treinamento que os diferencia. Fosse a comida, bastaria copiarmos. Altitude fosse o segredo, isso faria de bolivianos e equatorianos potências globais nesse esporte. Não são sequer regionais, ainda que a marcha atlética, um evento que pode durar horas, seja um sucesso no segundo. Mas as respostas iriam aos poucos aparecendo.
A primeira grande surpresa foi a caminho do treino, em Lideta. De onde estava hospedado até lá, descobri depois, era questão de menos de 1 km. Foi entrar no carro com o Ed, me acomodar, andar alguns quarteirões e hora de estacioná-lo para encontrar o corredor local com quem iríamos treinar.
Considero-me uma pessoa pragmática. Para que ir de carro correr tão perto? Não bastava irmos trotando? Falarei mais disso ao final. O local é uma mata de eucaliptos que lembra muito as florestas de pinheiros, tão comuns no Paraná, em uma mistura com pasto de gado e cabras. Os eucaliptos, trazidos e rapidamente bem adaptados à cidade, dão a alguns locais de treino um ar extremamente agradável ao nariz e aos pulmões. Você sai do centro de uma cidade tão poluída, com fumaça escura visível saindo dos carros, vans e ônibus velhos para correr naquele agradável aroma. E dizem ainda que mais do que o gostoso perfume, faz bem ao aparelho respiratório. Talvez seja uma explicação a mais que é esquecida pelos fisiologistas e especialistas. O terreno é alto, é verdade, quase 3.000 m, mas é um geograficamente acidentado não muito diferente do que você encontraria no interior paulista que conheço bem, por exemplo.
Após ser apresentado ao atleta local, me explicam que o treino seria de 45 minutos leves rodando naquela mata, naquele “pasto”. A primeira recomendação já quando trotávamos foi dada pelo meu guia, um “amador” que tem recorde pessoal de 1h05min em uma meia maratona na Índia: você nunca deve no treino ir direto ao topo do morro, pois isso tira a sua energia.
O que ele chama de topo é que os treinos são quase sempre ou muitas vezes em montanhas. Há um pico, e descobriria depois que sempre “visitávamos” esses picos correndo ao longo dos treinos! A ideia ali, ele explicava, era que rodássemos nesse pasto acidentado e terminássemos lá em cima os 45 minutos.
Havia sempre um planejamento por trás do meu treinamento com eles, não era apenas sair correndo. Ali a ideia era uma aclimatação. O objetivo desta primeira sessão era simplesmente começar a me fazer me acostumar e a me adaptar à altitude, auxiliando a superar a questão do fuso, do jet lag.
Treinar em altitude pela primeira vez na vida (eu não considero correr em Campos do Jordão/SP como altitude) provavelmente colocaria novos desafios à minha fisiologia (ou à de qualquer brasileiro nessas condições). O objetivo ali era uma corrida de 45 minutos em um ritmo suave e confortável.
Como já disse, corro há quase três décadas. Uma coisa que sempre tira um pouco de minha autoconfiança é que sempre que começo a correr um treino qualquer, me sinto — perdão pela expressão! — um bosta. Leva alguns minutos para o corpo e pulmões entrarem em sintonia e se entenderem.
Porém, o que vivi ali foi diferente. Os primeiros três minutos iniciais foram sufocantes, o pulmão puxava ar e, na raridade dos mais de 2.500 m, ele não vinha como de costume. A cidade de São Paulo fica entre 780 m e 847 m (Avenida Paulista). Campos do Jordão fica a 1.600 m. Sim, é mais difícil, muito mais difícil. E para piorar, o piso era mole, não era asfalto.
Para quem vive lá, essa luta de o pulmão puxar ar é o tempo todo, 24 horas ao dia. Por volta de três semanas, diz a literatura científica do assunto, seu corpo responde positivamente se adaptando de uma forma não tão difícil de explicar. Seu corpo passa a produzir mais glóbulos vermelhos (hemácias), nossos transportadores de oxigênio (*o doping sanguíneo, que é o ato de injetar no corpo o próprio sangue armazenado anteriormente, simula isso. O uso da EPO, a eritropoetina, imita isso também. Esse hormônio, agora famoso por causa do esporte profissional, mais notadamente por causa dos ciclistas do Tour de France, estimula a produção dessas hemácias. Nossa concentração natural de EPO é baixa, injetar EPO sintética é barato, fácil de encontrar e traz essa vantagem que se conquista com muito custo com treinamento em altitude). O Ed, por exemplo, bateu todas as suas marcas pessoais ao voltar de férias para Londres. Ele fez 1h18 em uma meia maratona em Londres (plana e ao nível do mar), mas fez “somente” 1h24 próximo a Adis Abeba, em uma cidade mais baixa.
Do ponto de vista técnico, dois corredores que fazem um 1h18min e outro 1h24min nos 21 km são de “gavetas” diferentes, eles não competem entre si. A altitude etíope é um doping natural e legalizado de EPO. Então, quando você se alinha contra um etíope, já está em desvantagem. Porém, isto sozinho não explica, afinal, Ed treinou demais para bater todas as suas marcas. Ele inclusive adotou algumas das estratégias locais das quais ainda falarei.
Voltando… Iniciamos o treino sem nenhum tipo de aquecimento ou alongamento. Começamos a trotar leve (“vá atrás de mim”, dizia o guia) em fila indiana, nada de lado a lado. Fila indiana, aliás, é algo a que você se habitua treinando por lá. Como os treinos são sempre em locais não muito abertos, correr em uma ou duas filas indianas (sempre!) ao mesmo tempo joga nas mãos dos líderes mais experientes o ritmo, a orientação e a direção do treino.
Há nessas filas toda uma questão de hierarquia e disciplina (cultura que você passa a observar com o andamento das sessões), assim como permite que todos possam correr sem atrapalhar outras pessoas e outros grupos que treinam também no local. Nas poucas vezes que vi alguém fazendo uma terceira fila era rapidamente repreendido para voltar para trás.
Foram de fato 45 minutos leves (com exceção dos primeiros e agonizantes três minutos, quando meus pulmões claramente não entendiam nada do que estava acontecendo). Após tantos anos de experiência de corrida nas costas é difícil você se surpreender. Corrida é um esporte simples, não há o que reinventar. Entretanto, três coisas me chamaram demais a atenção nessa sessão de estreia.
Uma mudança constante, incansável, de direção. O local era relativamente grande, bastaria irmos usando mais aquele espaço. Mas não. Se por um lado em um terreno que não deveria ultrapassar uma área equivalente a 4 ou 5 campos de futebol oficiais, era claro que repetiríamos, passaríamos mais de uma vez pelos locais. Porém, havia propositadamente uma constante mudança em zigue-zague, com curvas de 90° ou mais, fazendo meia-volta!
Isso é mais do que corrida. É uma musculação! Não corríamos em linha reta quase nunca. É difícil de explicar, mas mesmo sem usar as poucas picadas do local, era uma corrida usando todo o “pasto” e entre as árvores.
A corrida era leve, mas ela não é em ritmo constante. Geralmente em treinos leves as pessoas colocam um MP3, ligam o piloto automático e saem para completar o treino proposto (ex.: 6 km leves). É como se fosse subir em uma esteira, escolher o canal da TV à sua frente, escolher a velocidade e começar. Não é necessário pensar. Não lá na Etiópia!
Obviamente que subir e descer implica ritmos diferentes, mas estamos falando de cadência alternada, extensão de passada muito variada, pequenos saltos superando pequenos obstáculos, acelerações propositais, velocidades bem diferentes. É bem difícil a ponto de dizer que eu não sei como explicar, mas não é o tipo de corrida que você apenas desliga o cérebro e corre. Era uma corrida lenta, mas era corrida. Havia pequenos trechos de velocidade, mas ainda assim era um treino leve.
Por Danilo Balu
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