Nike! Nike! Nenikekamen! (algo como “Vitória, vitória! Regozijai-vos, nós a conquistamos!”). Teriam sido essas, segundo o escritor Luciano de Samósata, as palavras que o soldado Fidípedes disse a seus compatriotas quando alcançou a Acrópole após percorrer 40 km do campo de batalha de Maratona, na Ática, até Atenas, para anunciar o resultado da luta contra os persas. Após proclamá-las, caiu morto. Antes, porém, o hemeródromo (algo como corredor-mensageiro de dia inteiro) teria corrido um percurso estimado entre 140 e 153 milhas (225 a 246 km), de Atenas a Esparta, para pedir ajuda. Partira e, no dia seguinte, chegara.
Baseado nesse percurso, que liga essas duas cidades, o oficial britânico John Foden, da RAF (Royal Air Force), acompanhado por quatro colegas, tentou comprovar se seria possível repetir a façanha, em 1982. Três desses militares conseguiram. Foden o fez em 37h37min. No ano seguinte, um grupo internacional de corredores, formado majoritariamente por gregos e ingleses, lançou um evento, o Spartathlon, de 246 km. Essa é uma das ultramaratonas mais temidas e, por esse mesmo motivo, uma das mais ambicionadas por qualquer corredor dessa tribo de exagerados, os corredores de intermináveis percursos.
Dean Karnazes, o mais conhecido entre esses malucos, não poderia deixar de incluir uma empreitada dessas em seu currículo. E por dois motivos: além de ser fanático na perseguição pelos objetivos mais difíceis possíveis (e impossíveis), o autor de O Ultramaratonista, 50 Maratonas em 50 Dias e Run! é neto de gregos. Na verdade, seu nome é Constantine Nicholas Karnazes.
O projeto era reproduzir a jornada de Fidípedes da forma mais fiel possível: comeu, durante a empreitada, apenas alimentos disponíveis àquela época, naquela região: figo, carnes curadas, olivas. Essa aventura, somada à pesquisa vasta, consultas a historiadores fascinados por Fidípedes e muita reflexão pessoal sobre essa jornada, resultou em The Road to Sparta, lançado em outubro nos Estados Unidos, ainda não traduzido para o português — é possível adquiri-lo pelo site da Amazon.
Dean Karnazes relata que conseguiu identificar em si os traços da ancestralidade grega. Ele teria herdado o vigor físico e a capacidade de endurance, atributos próprios desse povo festeiro, capaz de dançar por horas a fio, entre os cacos dos pratos que quebram com muita vontade. É uma tese interessante.
Em entrevista à O2, o californiano diz que seu mais recente livro, embora se relacione a uma prova restrita a pouquíssimos, tem cativado desde ultramaratonistas até corredores de fim de semana. “O livro é baseado na Spartathlon, uma das mais desafiadoras corridas do planeta, mas muitos corredores casuais têm comentado comigo quanto o amaram. Existe uma conexão entre todos nós, corredores, que ultrapassa divisões entre idade e nível de performance. Acho que esse é o apelo de todos os meus livros.”
Essa conexão foi reforçada porque Dean Karnazes, desta vez, não surge como um super-herói que corre uma maratona em cada estado americano, ao longo de 50 dias. Em The Road…, em alguns sentidos, ele se parece um pouco mais com um mortal, como nós. Alguém que sofre, e muito, apenas para concluir a prova.
No começo da jornada, ao engolir a fumaça expelida por uma refinaria, o corredor sente um desconforto estomacal que o indispõe a se alimentar. Com energia que tira não se sabe de onde, Dean Karnazes consegue, a duríssimas penas, completar. “Uma das razões que aproximam os leitores de The Road to Sparta é que ele não me mostra no meu melhor estado, mas num contexto de luta e adversidade extremas apenas para alcançar a linha de chegada. Acho que é algo a que as pessoas se associam, porque todos já experimentaram algo decepcionante, mesmo os corredores de elite. É uma cena poderosa a de um homem rastejando, indo adiante mesmo quando todas as esperanças parecem perdidas. É um tema atemporal.”
SUPERATLETA
Na opinião de muitos, os ultramaratonistas são malucos. Karnazes, decididamente, não pode ser considerado lá muito normal. Além de meio fora do eixo, é uma pessoa curiosa, muito interessada em história. Quis saber como se sentiria um hemeródromo correndo com um traje de hoplita, o guerreiro helênico daqueles tempos. E lá foi ele a Santa Bárbara, a uma loja especializada em figurinos de filmes de Hollywood. Entre cabides com roupas usadas em Ben-Hur, Troia e 300, nosso herói encontrou um traje que não faria vergonha na Marquês de Sapucaí ou na São Silvestre. Assim paramentado, correu a Maratona do Vale do Silício de 2011. Aqueles 42,195 km foram suficientes para ele perceber que não seria interessante repetir a experiência de Fidípides com tanta fidelidade assim.
“Correr uma maratona como um hoplita foi mais do que suficiente. O roçar do tecido na pele foi muito doloroso. Constatei que esse era mais um dos desafios que os hemeródromos tinham de superar.”
O livro embute uma espécie de reencenação de uma corrida histórica, mas também apresenta uma pitada científica. Karnazes narra a ocorrência de um episódio descrito como Unihemispheric Slow Wave Sleep (USWS) – sono uni-hemisférico de ondas lentas, em português.
Trata-se da habilidade de deixar o lado do cérebro adormecer, enquanto o outro permanece acordado. A metade adormecida não fica em REM (rapid eyes movement), momento mais profundo do sono. O olho que corresponde à metade cerebral que fica em vigília fica levemente aberto; o outro, fechado. Esse fenômeno já foi observado em soldados envolvidos em manobras de combate ou patrulha, e também em pessoas que tinham de correr muito para fugir de agressores, bem como em animais.
“[…] estava tão determinado a continuar que não descansei. Apenas continuei correndo, movendo meu corpo à frente, enquanto estava adormecido. Não posso apontar qual distância cobri correndo nesse estado de locomoção noturna (afinal, estava adormecido). Quando olhei para trás para tentar localizar o ponto da minha última lembrança, do último lugar em que ainda estava consciente, me pareceu que talvez tivesse percorrido muitas centenas de passos. Chocante!”
Na entrevista à O2, Dean Karnazes tentou explicar o que aconteceu ali. “É fascinante que algo assim aconteça. O corpo alcança um estado de exaustão extrema e precisa dormir, mesmo enquanto corre. Acho que qualquer um pode repetir essa experiência se sair por aí e correr por 36 horas seguidas!”
HOMEM DO MUNDO
The Road… comporta também reflexões sociocomportamentais. Requisitado para dar autógrafos, posar para selfies ou ao menos apertar as mãos de fãs, Dean Karnazes mal consegue descansar nas aid stations, os pontos de apoio nos quais os ultramaratonistas recebem alguns cuidados e tentam recobrar o fôlego.
Conhecido entre corredores do mundo todo, é ainda mais assediado na Grécia, por um povo que se manifesta de maneira mais calorosa e ainda o identifica como um dos seus, devido aos ascendentes helênicos. “A Grécia é o local em que me sinto mais em casa fora dos Estados Unidos, mas me sinto confortável em qualquer lugar do mundo”, comenta.
O corredor-escritor nos oferece uma cena muito alegre de uma vila que visitou, algo que não se espera de um país engolido por uma crise econômica tão severa: “[…] passamos por tavernas e restaurantes com mesas nas calçadas, e havia gente em todos os lugares, de todas as idades. Crianças brincando nas calçadas, rindo e brincando de pega-pega enquanto seus avós as observavam. Havia música, e pessoas sentadas juntas, bebendo, contando piadas, rindo e comendo. Casais jovens olhando-se nos olhos. Era como uma cena de Hollywood, mas real. Essas pessoas podiam ser pobres, pensei, mas suas vidas pareciam mais ricas do que a de muitos multimilionários que conheci nos Estados Unidos”.
Karnazes, que já esteve no Brasil algumas vezes, traça até um paralelo entre brasileiros e gregos. “Há muitas similaridades entre as duas culturas. Acho que é por isso que gosto tanto de viajar ao Brasil. Gregos e brasileiros compartilham valores parecidos. Curtir a vida ao máximo é algo que identifico nas duas culturas.”
Por sinal, o ultramaratonista vai visitar o Brasil. O homem que percorreu os 50 estados americanos correndo maratonas planeja completar uma prova de 42 km em cada um dos 203 países reconhecidos pela ONU, ao longo de um ano. Para realizar a empreitada, está sendo auxiliado pela própria Organização das Nações Unidas e pelo Departamento de Estado norte-americano de forma a ter acesso a todos os vistos e permissões para adentrar tantos territórios.
No Brasil, a cidade na qual pretende correr é o Rio. “Sempre quis correr a Maratona do Rio, e acho que ela se encaixa no meu planejamento perfeitamente.” Bastante político, Dean Karnazes não deixa de fazer um aceno a São Paulo. “Estive no Brasil por três vezes e adorei cada uma dessas viagens. Uma vez (em 2009), fiz uma corrida de 24 horas pelas ruas de São Paulo com um grupo de brasileiros. Foi uma das mais memoráveis, divertidas e selvagens aventuras da minha vida!”
Uma das lembranças paulistanas de Dean é a pizza. Este repórter o viu devorar uma inteirinha, em uma de suas paradas. O corredor enrolou a redonda de massa ultrafina de sabor Califórnia, com muçarela e pedaços de abacaxi, como se fosse um gigantesco kebab, e dela deixou poucos vestígios para a posteridade. “É claro que a Itália tem pizzas divinas… mas o Brasil também tem. Pizzas estão fora da minha dieta, mas sempre que faço essas corridas que duram uma noite inteira, aparece um entregador com uma encomenda! Nessa corrida de 24 horas por São Paulo, fui alcançado por três entregadores de pizza. Boas lembranças! Os corredores brasileiros amam se divertir. Acho que é por isso que me sinto tão bem no Brasil.”
Existem em sua cabeça as lembranças gordurosas, e as recordações da seca e agreste Grécia. Voltando a The Road, Karnazes
não se cansa de exaltar a experiência vivida no Spartathlon. Ele ainda quer correr competitivamente a prova, alimentando-se como um corredor moderno.
Em seu último livro, Dean oferece um pouco mais de conhecimento sobre as origens da maratona. E tem mais: The Road to Sparta nos aproxima do berço da civilização ocidental. É como se Dean Karnazes nos emprestasse suas pernas para percorrer um fantástico itinerário pelo belo e árduo relevo do Peloponeso. Viajamos por locais onde isso que amamos, almejamos ou apenas admiramos — a maratona — começou. Nas páginas finais, quando vemos a foto da chegada de Dean a Esparta, ao lado da estátua de Leônidas, não há como não nos lembrar do ator Gerard Butler, gritando, em 300: “This is Sparta!!”. Obrigado, Fidípedes.
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