Na teoria, destemida é aquela pessoa corajosa, aguerrida, audaciosa e ousada. Mas quando se fala das meninas do Projeto Destemidas, é preciso acrescentar outras características, como empoderamento, consciência social e liberdade.
Moradoras do Complexo da Maré, na Zona Norte do Rio de Janeiro — maior conjunto de favelas da cidade, com aproximadamente 129 mil habitantes espalhados por 16 comunidades em uma extensão de 800 mil m², segundo o Censo Maré 2010 —, elas vivem uma rotina conturbada pelo clima de violência e pelo abandono do poder público, mas não se acomodam e lutam por dias melhores. E a corrida foi o ponto de partida para que cerca de 20 meninas, entre 16 e 26 anos, pudessem alçar voos e ampliar seus horizontes.
Articulada e engajada, a estudante Gabrielle Vidal, de 19 anos, moradora da Nova Holanda, uma das 16 comunidades do Complexo da Maré, é apaixonada por corrida. Ela, responsável pela comunicação do Projeto Destemidas e uma das mobilizadoras territoriais do Galpão Bela Maré, um dos eixos centrais de atuação do Observatório de Favelas, tem no esporte seu combustível para a rotina de estudos — em dois períodos: um no ensino médio e outro em um curso pré-vestibular — e trabalho.
“Para mim, correr é uma terapia. Se eu não correr 30 minutos que seja por dia, sinto que algo está faltando”, afirma Gabi, que começou a correr aos 12 anos para ficar mais tempo com seu pai, praticante desde os tempos do Exército, separado de sua mãe. “Sei da importância da corrida na minha vida, pois, além de fazer bem à saúde, abre horizontes para conhecer novos lugares e pessoas.”
Até entrar no Projeto Destemidas, há dois anos, as corridas de Gabi, que também se dedicava ao muay thai, restringiam-se às fronteiras da Nova Holanda e à Vila Olímpica da Maré. Por várias vezes, seu treinamento foi interrompido pela troca de tiros entre polícia e traficantes ou entre as facções criminosas.
“Essa violência é quase que diária aqui”, diz Gabi. “Mas não podemos nos entregar. O projeto nos ajuda a encontrar novos caminhos, a ir mais longe. Antes do Destemidas, minha corrida acontecia somente por aqui, mas agora já participei de provas em outros lugares, como no Leblon e no Aterro do Flamengo, por exemplo, e de treinos em vários locais do Rio.”
Para Gabi, que já correu três meias-maratonas (Asics Golden Run, Meia Maratona da Maratona do Rio e Rio S-21K) desde o ano passado, correr é romper barreiras. “O projeto viabiliza a ideia de bem-estar, saúde e os benefícios do esporte. Não é apenas correr por correr, mas é ganhar o mundo. É se libertar”, afirma ela.
“Antes, as pessoas me perguntavam para que ficar correndo, mas elas foram entendendo que é uma atividade saudável, que gera mudanças no corpo, na mente e na maneira de encarar a vida. Correr, no nosso caso, é uma rebeldia para mudar a forma de agir diante da nossa realidade. Hoje, consigo influenciar as pessoas da comunidade para correrem comigo.”
Foi justamente pela influência de uma mulher que tem importante contribuição na história do mundo das corridas que o Projeto Destemidas começou. O embrião surgiu em uma conversa de Kathrine Switzer com a repórter Carol Barcellos, da Rede Globo, em Boston, em 2017. O motivo da entrevista para o Esporte Espetacular era a comemoração pelos 50 anos da primeira participação de uma mulher na icônica Maratona de Boston. Em 1967, a alemã naturalizada norte-americana se inscreveu pelos correios, pagou US$ 3 e recebeu o número de peito com o nome de “K. Switzer”.
Durante a prova, o diretor Jock Semple percebeu que Kathrine tinha se atrevido a burlar as regras da maratona e foi expulsá-la. “Saia da minha corrida e me devolva o número de inscrição!”, gritou ele quando agarrou o ombro da maratonista, que corria pela primeira vez a distância. A tentativa de tirar Kathrine foi frustrada porque ela corria ao lado do namorado Tom Miller, jogador de futebol americano, que com a agilidade e força do esporte, deu um encontrão no dirigente e o afastou. O treinador de Kathrine, Arnie Briggs, que também corria com sua atleta, não permitiu o absurdo.
A rebeldia de Kathrine surtiu efeito cinco anos depois, quando a participação das mulheres foi oficialmente aceita após 75 anos da primeira edição da Maratona de Boston, em 1887, segunda mais antiga do mundo, atrás somente da maratona olímpica. O resultado do “atrevimento” da pioneira é que na 133ª Maratona de Boston, disputada este ano, com 26.632 inscritos, 11.970 mulheres cruzaram a linha de chegada. Além disso, o recorde mundial da maratona feminina já foi batido duas vezes em Boston, ainda que a prova seja tecnicamente inelegível para recorde.
Esse movimento de Kathrine também teve repercussão, 50 anos depois, numa comunidade a 7.789 km, distância entre Boston e o Complexo da Maré. No fim da entrevista para Carol, a pioneira das maratonas, sabendo que a repórter era corredora, disse: “Só te faço um pedido: que passe adiante o que a corrida te deu às mulheres que estão a sua volta. Porque a liberdade vem do coração”.
O pedido sensibilizou fortemente a repórter. Em seu retorno ao Brasil, Carol procurou a ONG Luta pela Paz, com forte atuação, há mais de 20 anos, no Complexo da Maré, e criou o projeto Destemidas com o objetivo de estimular o potencial das meninas e mulheres utilizando a corrida, que é inclusiva, como ferramenta de desenvolvimento pessoal e de autonomia.
“Há dois anos, procurei a área de responsabilidade social da Rede Globo para falar sobre minha vontade de desenvolver um projeto de transformação pelo esporte, pela corrida, minha paixão, que me deu tanto!!”, conta Carol, que já correu no Polo Norte e na selva amazônica. “Me disseram para conversar com o Luke, fundador do Luta pela Paz. Ele me disse que eu poderia trabalhar com eles durante um tempo para entender como funciona. Passei um ano e meio com apoio deles. Fundamos a ONG Destemidas e agora estamos num processo de independência, mas continuo fazendo parte do Conselho do Luta pela Paz. O trabalho deles é muito bonito e forte!”
O fato de o trabalho da ONG ser voltado só para mulheres tem um motivo: a desigualdade. Segundo o relatório sobre desenvolvimento humano preparado pelas Nações Unidas, o Brasil ocupa a 92ª posição no Índice de Desigualdade de Gênero, que retrata as diferenças de oportunidades no acesso à saúde reprodutiva, à autonomia e à atividade econômica. “Esse projeto foi pensado como resposta a fatores de risco. Ainda há um longo caminho para a igualdade. E acredito na importância do esporte nesse processo, pois ele é transformador e essencial no caminho da educação.”
Nesses dois anos, Carol viu o pedido de Kathrine ganhar corpo e começar a transformar a vida das mulheres da Maré. “O esporte promove uma mudança de atitude. A corrida me mostrou que sou mais forte e posso ir além do que imaginava. E, em nosso projeto, elas estão conhecendo essa sensação”, afirma a repórter, que divide o comando da ONG e a busca por parceiros que acreditem no projeto com Gabriela Pinheiro, do Luta pela Paz.
“Começamos nos reunindo para correr, mas, hoje, além da corrida, temos encontros com psicólogas, por exemplo. São dias em que nos reunimos para fazer dinâmicas, para conversar, para trocar, para dividir. Com o tempo, ganhamos confiança umas nas outras e vamos dividindo nossas histórias. Inspiramos e damos a mão à outra. Também há um lado cultural, tanto que, em setembro, fomos assistir ao espetáculo Corpo, da Deborah Colker, no Theatro Municipal do Rio.”
Segundo Carol, o início do projeto causou um estranhamento nas meninas, pois muitas admitiam que não gostavam de correr. Mas, aos poucos, elas foram encontrando o prazer em se desafiar, em criar metas. “A sensação da chegada em uma prova ou de ter terminado um treino traz muitas conquistas. Isso prova que somos mais fortes. E essa confiança na realização de um desafio ou meta é transformadora”, diz Carol. “Penso em cada uma. Em cada sorriso, cada experiência que elas vivem. Cada lugar novo que conhecem graças à corrida. Cada mudança é uma conquista.”
Para Vanessa de Figueiredo Protasio, psicóloga das Destemidas, o esporte trabalha nas atitudes que vão gerar mudanças positivas e conquistas na corrida, assim como também na vida pessoal de cada uma. “Por meio da corrida, queremos mostrar para essas meninas que o horizonte é infinito, que está além do mundo que as cerca”, afirma Vanessa, que também é corredora. “Queremos ajudar na transformação delas como atletas e, principalmente, como pessoas para descobrirem sua autonomia.”
Essa transformação na vida dessas meninas, para Carol, é enorme e ilimitada. “Elas podem chegar aonde quiserem. A corrida mostra que podemos sempre ir mais longe. Que elas levem isso para a vida delas.”
Nessa sororidade (palavra difícil cujo significado resume muita coisa: união e aliança entre mulheres, baseada na empatia e no companheirismo, em busca de alcançar objetivos em comum), os ensinamentos têm mão dupla. Além de inspirar e incentivar o empoderamento das integrantes do Destemidas, Carol se considera uma aprendiz das meninas. “Elas me ensinam a ser mais forte. Sou muito grata por isso.”
Para Gabi Vidal, a atitude de Kathrine foi transformadora e serve de inspiração para as batalhas que as mulheres enfrentam em sua rotina diária. “A Kathrine foi resistente, pois mostrou que queria estar onde ela tinha direito de estar, independentemente da opinião dos outros”, afirma a jovem corredora. “Ninguém tem o direito de falar o que devemos ou não fazer, muito menos de nos tirar de onde queremos estar.”
E o pedido de Kathrine para Carol ao fim da entrevista reverbera em Gabi diariamente. “A corrida me dá confiança no meu dia a dia. Traço metas e corro atrás da sua concretização, seja nos estudos, seja no trabalho”, revela ela, que vai prestar vestibular para comunicação social para ser jornalista. “Na corrida, ainda quero fazer maratonas, ultras. Quero ter liberdade para poder ir até onde as pernas e a mente me levarem, seja na corrida, seja nas minhas escolhas pessoais e profissionais.”
*Por Iúri Totti
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