O cinema é a mais democrática e abrangente das artes e possui certo poder de suscitar diferentes sentimentos. Aos que se deixam levar pelos filmes é permitido experimentar sabores, viver emoções, ganhar inspiração. Democrática é também a corrida. Como diz a velha expressão, bastam apenas um par de tênis e força de vontade para praticá-la.
Quando o esporte e a arte se unem, o resultado pode tomar a estrada para diversas direções: da comédia, do drama, da superação… A seguir, selecionamos dez filmes que têm a corrida como mote ou influência. Perfeito para quem que ter a corrida na vida até na hora de ficar no sofá.
O etíope Abebe Bikila foi o primeiro africano a vencer uma maratona olímpica e o primeiro homem a conquistar o bicampeonato na prova. Em 1960, em Roma, venceu descalço, pois não se sentia confortável com os tênis da patrocinadora dos Jogos. Um adendo: bateu o recorde mundial da prova com o tempo de 2h15min16s. Em 1964 (dessa vez calçado), conquistou o ouro em Tóquio com mais de 4 minutos de vantagem para o segundo colocado.
O filme é um retrato pessoal forte e profundo de Bikila. Por mais que não seja uma obra-prima do gênero, consegue trabalhar bem a incrível história e mostra com sensibilidade a personalidade do atleta e os dramas que enfrentou após seu retorno dos Jogos de 1960 (quando fez parte do exército do imperador Haile Selassie e chegou a ser acusado de traição). Mostra, também, a sua vida após o acidente de carro que o deixou paraplégico e com sequelas que o levaram à morte aos 41 anos, em 1973.
Politicamente, o filme fica devendo, pois não é capaz de se aprofundar em questões importantes para a Etiópia na época, como o pós-guerra, quando o país foi invadido pela Itália — o que até gerou uma piada comum com relação à Bikila: “Foram necessários um milhão de italianos para invadir a Etiópia, mas apenas um etíope para conquistar Roma”, em alusão a sua vitória em 1964.
De uma história focada em um treinador de futebol (americano) que precisa fazer uma mudança em sua carreira e passa a treinar garotos pobres, e que tem como protagonista Kevin Costner, já se pode esperar uma fórmula bastante comum (para não dizer desgastada). Produzido pela Disney, é o famoso feel good movie (algo como “filme para se sentir bem”), com seus clichês de dificuldade e superação, perseverança e determinação.
Costner, seguro e cativante, interpreta Jim White, que, após ser demitido de uma grande equipe, muda-se para a pequena e pobre McFarland (Califórnia) para recomeçar a vida. É inspirador ver toda a transformação dos jovens que, não tendo talento para o futebol, passam a treinar cross country e tornam-se campeões estaduais. O filme é baseado em fatos reais e os garotos da época em que o filme se passa conseguiram abandonar os campos de colheita em que trabalhavam para ir à faculdade – até hoje, aliás, o local tem forte tradição no esporte.
Temas mais profundos, como racismo e xenofobia, são abordados (a cidade é um reduto de imigrantes mexicanos), mas o foco mesmo é o esporte e sua utilização como forma de mudança de vida. Para se ver em família no fim de semana.
Também baseado em uma história real, 100 Metros narra, em um equilíbrio de sensibilidade e comédia, como Ramón, um jovem comum e sedentário, foi diagnosticado com esclerose múltipla, mas não se deixou abater e passou a treinar para disputar um Ironman. O enredo, emocionante e real, narra a descoberta da doença, a descrença em sua melhora (chegaram a dizer que ele não seria capaz de andar nem mais 100 metros – daí o nome do filme) e sua resiliência no processo de recuperação.
A esclerose múltipla é uma doença autoimune que atinge a medula, os nervos ópticos e o cérebro, afetando fala e movimentos. Dos primeiros sintomas ao diagnóstico, Ramón vive um drama até que o esporte entra em sua vida como parte dos exercícios de fisioterapia. Mas é ao ver o cartaz de divulgação de um Ironman que tudo muda: inspirado, o protagonista traça como objetivo terminar a prova, composta por natação (3,8 km), ciclismo (180 km) e corrida (42 km).
Uma das relações mais interessantes do filme é entre Ramón e seu sogro, Manolo, aparentemente apenas um velho bêbado e rabugento, mas que se mostra sensível enquanto sua amizade com o genro se aprofunda. O apoio de Manolo, uma atuação digna de Karra Elejalde, é essencial para o desenvolvimento de Ramón, dos primeiros passos à disputa da prova.
No filme Em Busca de um Milagre, Ralph Walker (uma boa atuação do jovem Adam Butcher), enfrenta um drama pessoal e tem na corrida um alento, uma forma de superar as dificuldades impostas pela vida. Ralph é um jovem de 14 anos cuja mãe passa por uma doença grave e desconhecida, permanecendo na cama sob cuidados médicos.
Ralph estuda em uma escola católica tradicional dos anos 1950 e luta a sua forma contra a repressão imposta pelo método bastante tradicional de ensino do qual faz parte: gosta de fumar escondido, arruma encrencas pelo colégio e até é pego se masturbando pelo diretor da escola. Por conta das travessuras e para que se afaste dos problemas, Ralph é forçado a fazer parte da equipe de cross country do colégio.
O “saint” do nome original do filme em inglês é uma brincadeira com toda a questão religiosa que envolve o filme do começo ao fim. Sua mãe entra em coma e é dito pelos médicos que somente um milagre poderá salvá-la. Ao mesmo tempo, o treinador da equipe de Ralph diz que seria um milagre caso algum membro da equipe vencesse a Maratona de Boston.
Daí desenrola-se toda a preparação do garoto em busca de um feito heroico que seja capaz de salvar a sua mãe. O filme tem um equilíbrio entre emoção e diversão e consegue atrair o espectador sem muito esforço.
Segundo longa-metragem dirigido por Angelina Jolie, foi indicado para três Oscar (todos secundários): fotografia, mixagem de som, edição de som. Baseado no livro de mesmo nome, a obra conta a história de Louis Zamperini, um ex-atleta olímpico e herói de guerra ítalo-americano cuja vida e os acontecimentos que a envolveram foram tão fantásticos que podem até soar como ficção.
A apresentação do personagem é interessante para descobrirmos mais sobre a sua infância pobre, os preconceitos que sofria por ser imigrante italiano nos Estados Unidos e as travessuras que aprontava. Mas só serve de aquecimento para o que vem depois.
Incentivado a correr por seu irmão quando adolescente, Louis chega às Olimpíadas de 1936 (realizadas na Alemanha nazista) para disputar os 5 mil metros. Apesar de terminar na oitava posição na final, ganha destaque por correr a última volta mais rápida da história (56 segundos, um feito inigualável para a época).
Se só por esse feito já podia ser considerado um homem de garra, o que passaria durante a Segunda Guerra Mundial viria para colocar à prova toda a sua resistência. Convocado em 1941, sofreu um bombardeio em 1943 e ficou à deriva no mar durante 47 dias até ser capturado por forças japonesas. Como prisioneiro, sofreu torturas e abusos até ser resgatado por forças aliadas ao fim da guerra. Zamperini ainda viveu até os 97 anos e faleceu poucos meses antes do lançamento do filme, em 2014.
Com tanta ação e acontecimentos fantásticos, fica difícil achar o filme chato. Apesar de alguns clichês e dramatização em exagero, é fácil se apegar a uma história tão incrível e verdadeira e se deixar levar pelos momentos de superação.
Vencedor do Oscar de melhor filme em 1982, Carruagens de Fogo é mais lembrado pela icônica cena de corrida na praia ao som de Vangelis (trilha sonora do filme também premiada). A cena dos atletas britânicos treinando à beira-mar foi exaustivamente parodiada. Talvez esses fatores façam o filme soar como um clássico obrigatório, o que é até verdade para quem é apaixonado por cinema e/ou por corrida, mas é certo exagero pensar na película como uma obra atemporal e para todos os públicos.
O filme conta a história de Eric Liddell e Harold Abrahams, atletas que têm o objetivo de disputar as Olimpíadas de 1924 pela equipe britânica. Liddell é um missionário católico escocês bastante devoto, enquanto Abrahams é filho de uma família judia, deixando claro que o conflito religioso permeia parte do filme.
As eliminatórias dos Jogos seguem bem para ambos até que uma das classificatórias de Liddell é marcada para domingo. O atleta recusa-se a competir por ser um dia sagrado, trazendo à tona a relação de antagonismo entre a prática religiosa e sua paixão pelo esporte. Até há uma tentativa de unir às diferenças dos personagens uma análise mais aprofundada de questões importantes, como xenofobia e classes sociais. Mas são mais flertes do que relações profundas. De qualquer forma, o filme é interessante e tecnicamente bom. Assista sem pressa.
O filme que deu a Jennifer Lawrence seu primeiro Oscar trata de um tema pesado como a depressão de forma leve. Lawrence faz par romântico com Bradley Cooper, que também tem uma atuação profunda e convincente, que lhe rendeu uma indicação de melhor ator. Pat (Cooper) é um jovem que tenta se recuperar de uma separação traumática (ele agrediu o amante da mulher ao encontrá-los juntos em sua casa) e volta a morar com os pais após a reabilitação. Pat se esforça para controlar sua depressão e surtos bipolares — e acha a corrida como um dos caminhos. No processo, conhece Tifanny (Lawrence), uma jovem também problemática.
O filme não foge de pequenos clichês, mas não chega a ser problema, pois é fácil se envolver com a história e se divertir com os alívios cômicos bem trabalhados pelos personagens secundários, como o pai de Pat (Robert de Niro), também agressivo e sistemático, seu amigo de infância, um colega de clínica (Chris Tucker) e seu terapeuta. A corrida tem papel importante na recuperação de Pat, que vê no esporte um meio de extirpar a negatividade e superar os acontecimentos. Correndo (sempre com moletom e um saco plástico no corpo “para suar mais”) ele se aproxima de Tifanny. Eles desenvolvem uma relação de amizade e auxílio mútuo.
O britânico Simon Pegg protagoniza e corroteiriza esta comédia dirigida por David Schwimmer (o Ross, de Friends). Ele interpreta Dennis, que, cinco anos após abandonar a sua noiva Elizabeth grávida no altar, decide reconquistar o seu amor. Elizabeth, porém, namora Whit, um tipo atlético que correrá uma maratona na Nike River Run, uma tradicional corrida londrina (inventada para o filme, os produtores não conseguiram os direitos de filmar na Maratona de Londres). Dennis decide que correrá os 42 km, pois acredita que, ao demonstrar compromisso com tal objetivo, mostrará a Elizabeth que está pronto para um relacionamento com ela.
O enredo é um tanto quanto bobinho, mas se diferencia das típicas comédias pastelão dos EUA, mesmo sendo dirigida por um humorista norte-americano. O que faz o filme ser menos tosco do que poderia é o próprio Simon Pegg, pouco conhecido do público brasileiro, mas aclamado em seu país, já tendo vencido o Bafta por sua atuação na série Spaced.
Pegg segura a graça do filme e as boas piadas da película têm seu toque ácido e irônico por conta da assinatura do roteiro. Pegg faz, afinal, um ótimo anti-herói e sabe cativar o espectador. Um filme engraçado para assistir sem muitas pretensões.
O cinema iraniano é um dos expoentes do Oriente Médio nas últimas décadas. Filhos do Paraíso reúne a sensibilidade e a profundidade das histórias cotidianas — uma das marcas do cinema persa a partir dos anos 1980 — sem perder o ritmo. O filme conta a história de Ali, um simpático garoto de 9 anos que perde o único par de sapatos da sua irmã Zahra, de 6 anos, ao levá-lo para reparos (um problema sério para uma família pobre da periferia de Teerã).
Para evitar a bronca dos pais, Ali passa a dividir o seu par de tênis com ela. A película mostra a saga e a cumplicidade dos irmãos, que revezam os calçados escondidos dos pais, enquanto, num segundo plano, reflete sobre uma sociedade desigual.
A chance para resolver a situação surge quando Ali descobre uma competição de corrida entre escolas cujo prêmio é… um par de tênis! No esforço de preparar-se para a competição sem deixar que a família tome conhecimento, Ali (numa atuação tocante do pequeno Amir Farrokh Hashemian) corre sem parar, num misto de angústia e esperança — uma analogia interessante à vida dos que são relegados à pobreza e cuja única possibilidade é o sacrifício.
Filhos do Paraíso foi indicado ao Oscar de melhor filme estrangeiro em 1999 com outros de temática semelhante, como A Vida É Bela e Central do Brasil.
Do ponto de vista histórico, Raça, cinebiografia de Jesse Owens, atleta que se destacou em provas de velocidade na década de 1930, é um bom entretenimento. O filme desenvolve de forma ampla a vida do velocista, buscando mostrar não apenas suas conquistas nas pistas, como também suas relações e problemas pessoais. Compromete-se, ainda, em tentar abordar a questão racial envolvida no contexto em que a história se passa (o próprio nome do filme em inglês é um trocadilho entre raça e corrida).
O mote são as Olimpíadas de 1936, em que Owens conquistou suas quatro medalhas douradas (100 e 200 metros rasos, salto em distância e revezamento 4×100 metros) na Alemanha nazista de Adolf Hitler. A direção faz um bom trabalho quando foca em desenvolver questões reais, mas se perde nos tantos dramas que pretende abordar. Poderia haver mais objetividade e menos romantização, afinal, o mais interessante da história de Owens são os acontecimentos que causaram impactos reais. Na relação entre o atleta e Hitler, o debate é superficial e não se preocupa em desmistificar algumas lendas. Faz parecer que a questão racial era um problema mais pontual do que estrutural, não se aprofundando como poderia na própria segregação institucional dos Estados Unidos naquele período.
Tecnicamente não é um filme ruim, e é possível se divertir e se emocionar se você for capaz de se abstrair dos problemas e se deixar levar pela beleza da história. As atuações, se não são dignas de premiação, não comprometem. Mas talvez um documentário que se propusesse a se aprofundar na história real, analisando o ambiente social da época de forma mais crítica (e não tão superficial), fosse mais interessante do que um filme mergulhado em situações romantizadas. é treino
Por Fausto Fagioli Fonseca
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