Kathrine Switzer abriu caminho para uma cultura diferente no dia 17 de abril de 1967, uma data que mudou a história do esporte. Decidida a ser protagonista de sua própria vida, ela escolheu a corrida como esporte quando foi aceita no curso de jornalismo da Universidade de Syracuse.
Anos antes de se tornar ícone feminino no mundo da corrida, Kathrine teve sua trajetória definida por um conselho de seu pai. Prestes a entrar no ensino médio, ela contou ao pai que cogitava a ideia de ser cheerleader na escola.
“Nunca me esquecerei desse dia. Meu pai me olhou nos olhos e disse: ‘Você não quer ser uma cheerleader. Torcedores torcem por outras pessoas. Você quer é que torçam por você. A vida é participar, não assistir’”, lembrou.
Inspirar pessoas e mostrar que mulheres podem correr são especialidades de Kathrine Switzer. Convidada por uma marca esportiva para uma série de palestras e encontros no Brasil, ela cativou as pessoas por onde passou com sua história de vida, simpatia e coragem.
“A corrida me mudou completamente. Nessa época, eu era magra, insegura e sentia que cada milha era uma vitória”, disse. Como a universidade não tinha uma equipe feminina de corrida, a única alternativa era treinar com o time masculino de cross country, comandado pelo treinador Arnie Briggs.
Briggs gostava de contar a Kathrine sobre suas experiências na Maratona de Boston, mas foi pego de surpresa quando a pupila revelou que gostaria de se aventurar na prova. “Mulheres são muito frágeis para uma maratona”, repetia o treinador.
Oficialmente, as mulheres não eram impedidas de disputar a Maratona de Boston. Não havia um item sequer do regulamento que vetasse a presença de corredoras, porém era forte a crença limitante de que mulheres não eram capazes de correr 42.195 metros.
“A ideia de correr longas distâncias era questionável entre as mulheres, porque, na cabeça de muita gente, uma atividade esportiva intensa faria com que a mulher ficasse com pernas grandes, tivesse bigode, pelos no peito e o útero deixasse de funcionar”, recorda a americana.
Fã dos escritores J. D. Salinger e T. S. Eliot, Kathrine não se importou com os comentários negativos e se inscreveu na Maratona de Boston com suas iniciais (K. V. Switzer).
Ainda que a organização imaginasse que se tratava de um formulário preenchido por um homem, era a primeira vez que uma mulher entrava oficialmente em uma maratona, um território exclusivamente masculino até então.
Na manhã da prova, com o número de peito 261 fixado em seu moletom cinza, a jovem de 20 anos largou ao lado de seu namorado, Tom Miller. “Antes da prova, outros corredores foram simpáticos comigo. Diziam: ‘Olha só, é uma garota’. Eles estavam empolgados. Briggs repetia: ‘Sim, eu que a treino’.”
O clima amigável acabou no km 3. Repleto de fotógrafos, o caminhão de imprensa acompanhava todas as passadas de Kathrine. “Eu escutava os fotógrafos pedindo para que corrêssemos devagar porque queriam fotografar aquele momento”, relata.
A movimentação chamou a atenção de Jock Semple, escocês que comandava a prova com rigidez. Depois de saber que havia uma mulher entre os participantes, Semple se apressou para afastá-la.
Com truculência, empurrou a jovem e ordenou: “Caia fora da minha corrida e me dê esse número de peito”. Essa sequência tão emblemática foi clicada pelos fotógrafos e roda o mundo até hoje.
Protegida pelo namorado, que empurrou Semple, Kathrine decidiu continuar para que aquilo servisse de exemplo para outras mulheres.
“Naquele momento, eu pensei: ‘Vou terminar essa corrida do jeito que for’. Ninguém acreditava que eu podia fazer aquilo e, de repente, percebi que, se eu não terminasse, as pessoas realmente acreditariam que as mulheres não mereciam estar ali”.
Com dores em diversas partes do corpo, ela concluiu a maratona em 4h20min. Na madrugada seguinte à prova, voltando para a universidade, notou que seu feito tivera grande repercussão.
“Paramos em uma loja de conveniência para pegar um sorvete e um café. Foi ali que vimos que os jornais estavam recheados de fotos minhas. Eu percebi que aquilo tinha sido realmente importante. Vi que tinha mudado a minha vida e que provavelmente poderia mudar o esporte feminino”, disse.
A percepção de que o esporte feminino mudaria nos anos seguintes se concretizou. Em 1972, a Maratona de Boston oficializou a criação da categoria feminina.
Paralelamente, cresceu o volume de cobranças sobre o Comitê Olímpico para que a maratona olímpica contasse com a participação de mulheres — algo que se confirmou em 1984, nos Jogos Olímpicos de Los Angeles.
Atualmente, não há um abismo que separa o número de participantes homens e mulheres em uma maratona, diferentemente do que havia em décadas anteriores.
Na edição de 2018 de Boston, dos 25.831 concluintes, 11.628 eram mulheres. Na faixa de idade dos 18 aos 39 anos, as mulheres foram maioria, com 5.790 representantes.
Na década de 1970, enquanto o mundo fervilhava com mudanças sociais e culturais, Kathrine intensificou seus treinos de corrida e atingiu resultados expressivos — e sem cultivar bigode, pelos no peito ou pernas desproporcionais, como apostavam os seus contemporâneos.
Kathrine Switzer venceu a Maratona de Nova York de 1974, com o tempo de 3h07min29s, e foi a segunda colocada em Boston em 1975, registrando 2h51min37s.
A partir da segunda metade dos anos 1970, Kathrine cavou espaço em transmissões esportivas. Ela já participou como comentarista de mais de 200 grandes provas — entre elas, as maratonas de Boston e Nova York.
“A corrida me deu a capacidade de arriscar, de enfrentar desafios e isso foi a melhor coisa que me aconteceu. Cresci de maneira empoderada. Quando as pessoas diziam que eu não teria uma oportunidade, eu dizia que criaria a oportunidade. Se não havia um time, eu criaria um time. Se não havia maratona feminina nos Jogos Olímpicos, eu dizia: ‘Vamos fazer da maratona feminina um esporte olímpico’. Nós conseguimos. E tudo isso veio daquela corrida de uma milha por dia.”
Seu pioneirismo tornou sua presença requisitada em palestras e eventos de negócios. Aos 71 anos — embora pareça ter dez a menos —, ela segue correndo e roda o mundo contando suas experiências.
Ela diz que se encontrou muitas vezes com Jock Semple após o episódio em Boston. O escocês, no entanto, nunca pediu desculpas formais a ela, que não guardou rancor do homem que, por linhas tortas, mudou sua trajetória.
“Não passo um único dia da minha vida sem agradecer a Jock Semple. Ele me assustou e me enfureceu, mas também me inspirou”, diz.
Em maio de 1988, Semple foi derrotado por um câncer e Kathrine foi uma das últimas pessoas a visitá-lo no hospital.
“Por meio do esporte, você pode abrir caminho para culturas diferentes. Muitas das mulheres no mundo ainda vivem em uma condição terrível. Seja no Afeganistão, na Arábia Saudita ou na porta do lado da sua casa. Nós precisamos pegar essas mulheres pelas mãos e mostrar que elas podem colocar o tênis e correr”, ela termina.
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