Papo de Corrida

A lenda vive! Kenenisa Bekele ressurge após seguidas lesões

Bastava o sino que anunciava a última volta da corrida soar em qualquer estádio em que Kenenisa Bekele competia para que os espectadores se colocassem de pé, com olhos vidrados e pelos eriçados, para vê-lo dar o seu espetáculo, como uma pluma levada pela tormenta, leve e veloz.

Imbatível nos 10.000 metros entre 2003 e 2011, o etíope da pequena Bekoji, celeiro de grandes atletas do país, fez história nas provas de cross country e de pista: são nada menos do que 17 medalhas de ouro em Mundiais de ambas as categorias, três medalhas de ouro e uma de prata nas Olimpíadas e três recordes mundiais oficiais (5.000 e 10.000 metros outdoor e 5.000 metros indoor), ainda não superados.

Kenenisa é uma lenda que viveu seu apogeu na década passada, conquistando todos os títulos possíveis em suas modalidades. Passou por momentos difíceis na carreira por conta de lesões em sequência e, feito fênix, deu asas a um maratonista veloz, resistente e, como nos velhos tempos, vencedor. Desde que decidiu dedicar-se às maratonas, venceu duas vezes a tradicional Maratona de Berlim (2016 e 2019), com direito à incrível marca de 2h01min41s na última edição, ficando apenas 2 segundos atrás do recorde mundial de outra lenda, o queniano Eliud Kipchoge, seu rival das pistas e, agora, das estradas.

A Maratona de Londres, considerada uma das mais rápidas do circuito das majors (protagonizou um recorde mundial masculino em 2002), já recebeu dois duelos entre a dupla, ambos vencidos por Kipchoge, que conquistou a vitória em Londres por quatro vezes (2015, 2016, 2018, 2019) e é o detentor do recorde do percurso, com a marca de 2h02min37s. A O2 bateu um longo papo com o etíope que, aos 37 anos, se sente pronto para continuar fazendo história e vislumbra no ano de 2020 mais um recorde mundial para o seu extenso e vitorioso currículo, desta vez nos 42 km.

Sua vitória em Berlim (2h01min41s), a apenas 2 segundos do recorde mundial, pegou grande parte da imprensa e do público de surpresa. Você se surpreendeu com o resultado ou esperava esse desempenho? O que faltava para bater o recorde? 

Não tinha uma preparação perfeita, me machuquei na primeira parte do ano e só tive um período curto de treinamento. Mas foi um bom treinamento e me senti em forma e forte novamente depois de um longo tempo lutando com lesões persistentes no quadril, na coxa e na panturrilha. Eu sabia que isso poderia acontecer na Maratona de Berlim: ou não seria bom e talvez eu tivesse que desistir, ou poderia me sair bem e me divertir de novo. De qualquer maneira, pretendia correr rápido, mas não esperava chegar tão perto do recorde mundial. Foi uma surpresa para mim e me deu muita motivação, além da certeza de que estava no caminho certo com os treinamentos e a preparação como um todo.

Ambos os seus títulos em majors foram em Berlim. Essa maratona é realmente especial? 

A Maratona de Berlim possui um dos percursos mais rápidos do mundo e, na maioria das vezes, boas condições climáticas. Além disso, tem o fator do público, que participa bastante durante todo o trajeto. É incrível!

Como você define o longo período de lesões seguidas que limitaram uma sequência de resultados? Foram os piores momentos da sua carreira? 

Foi muito desafiador, mas jamais uma ruptura com o esporte: nunca tive dúvidas de que voltaria a ficar saudável. Tudo começou com vários problemas na panturrilha e isso deu início a uma série de lesões devido à diferença no equilíbrio e na força esquerda/direita. Tive bons momentos naqueles anos, mas tive azar na Maratona de Dubai em 2015 (prova que abandonou no km 30). Toda a minha equipe — médicos, fisioterapeutas, treinador e gerência — sempre acreditou em mim, e seguimos o caminho certo neste verão.

Você pensou em se aposentar por causa das lesões? 

Nunca.

Que diferenças você vê entre o jovem Kenenisa, recordista mundial dos 5.000 e 10.000 metros e campeão olímpico, e o atual, mais experiente e um dos melhores maratonistas do mundo?

Quando eu era jovem, podia fazer tudo e meu corpo não se machucava facilmente. Essa é a maior diferença em comparação aos dias de hoje. Não havia um limite de quanto eu poderia treinar, mas agora preciso treinar com mais sabedoria e dosando cargas. 

Olhando os resultados e a excelente performance em Berlim no ano passado, as respostas do corpo parecem ter sido boas… 

Meu corpo ainda responde muito bem a um bom treinamento. A verdade é que a minha experiência de pista é vital, essencial para o meu desempenho na maratona. Você vê isso nos melhores maratonistas do mundo, como o próprio Eliud Kipchoge. Nós crescemos na pista e tenho certeza de que não poderia correr maratonas como corro hoje sem a minha vivência na pista. Foi nela que desenvolvi velocidade, resistência mental, capacidade de sentir o corpo e de saber qual é o melhor ritmo na maratona para continuar uma longa carreira. A pista me fez forte!

Sobre Eliud Kipchoge, ele recentemente correu 42 km abaixo de 2 horas em um evento especial. Como você vê esse feito? 

Tenho um grande respeito por Eliud e considero seu feito de correr abaixo de 2 horas uma das maiores conquistas da história. Está abrindo uma janela inteira de oportunidades para o esporte. Não esqueçamos que ele é um corredor extraordinário e que põe tudo em seu treinamento. Ele é incrivelmente forte mentalmente e penso que nenhum outro atleta poderia ter feito isso — exceto, é claro, eu, antes das lesões.

Conte sobre sua infância e seu início na corrida. Pode nos dizer como foi esse processo? Você também era jogador de futebol… 

Sempre fui muito bom em correr. O futebol é popular na Etiópia e muitas crianças brincam, é divertido. Mas desde pequeno eu ganhava as competições escolares e sabia que tinha nascido para correr. Primeiro vieram as corridas de cross country e foram elas que me fizeram forte para as corridas de pista.

Falando em futebol, você é fã do futebol brasileiro? Tem algum ídolo aqui? 

O Brasil tem tantos grandes jogadores de futebol! Eles são uma alegria de se olhar e, para mim, realmente são os melhores do mundo. Desculpe, não posso escolher apenas um.

Pode nos contar brevemente sobre os seus treinamentos atuais? Você disse que não tinha um treinador e que treinava sozinho. E hoje? 

Faço dois treinamentos por dia, um de manhã cedo e um no fim da tarde. Costumo fazer longas corridas, treinamento de ginástica e exercícios diários, além de intervalados. Hoje meu treinador é Mersha Asrat e eu corro com meu outro treinador, Hadji, junto com o seu grupo.

Um dos grandes nomes da corrida em seu país é Haile Gebrselassie e imagino que ele tenha sido uma grande referência para você. Como foi vencê-lo nos 10.000 metros de Atenas, em 2004? 

Respeito muito Haile, profundamente. Ele foi um dos grandes atletas da história da Etiópia e foi ele quem me deu confiança. Fico muito orgulhoso de poder carregar o bastão passado por ele.

Você ainda sonha em competir em uma Olimpíada? Como vê a possibilidade de correr a maratona nas Olimpíadas de Tóquio, que começam no final de julho (N.E.: entrevista concedida antes do adiamento dos Jogos Olímpicos para 2021)? 

Ainda não sei. As circunstâncias da maratona olímpica serão bastante desafiadoras. Estou me concentrando em uma coisa de cada vez e agora o meu foco é a Maratona de Londres (em abril). Além disso, tudo depende da Federação Etíope, se eles querem me selecionar para a maratona olímpica.

E em Londres, veremos você batendo o recorde mundial (N.E.: entrevista concedida antes do adiamento da Maratona de Londres para outubro)? 

Esse é um dos meus objetivos. Isso me tornaria o atual recordista mundial dos 5.000 metros, dos 10.000 metros e da maratona. Seria muito especial para mim.

 

Por Fausto Fagioli Fonseca

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