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Incrustado igual joia no topo das montanhas da Serra Nevada, quase 2 mil metros acima do nível do mar, o lago Tahoe é uma esmeralda resplandecente ladeada por verde mata. Sua beleza ilumina e inspira a todos que já percorreram ou um dia haverão de trilhar seu entorno, na maratona que lhe toma emprestado o nome.
O que a Maratona do Lago Tahoe tem de bela tem de desafiadora, não só por ser disputada em altitude, mas por seu encabritado trajeto, que tem como ponto mais provocante uma íngreme subida de quase 2 km, apropriadamente apelidada de Colina do Inferno.
Pois foi ali mesmo, quando chegava ao sopé daquele barranco, que vi, pouco além, já iniciando a subida tida como ameaçadora, um casal de gigantes. Não apenas altos: pesados, obesos, como se fossem enormes ovos de avestruz. Não caminhavam: corriam, trotavam, mantinham o ritmo que lhes era possível, mas seguiam.
Quando enfim consegui passar por eles, notei suas bochechas incandescentes, o suor que rolava para o asfalto; notei também que, no número de peito do homem, a marca de categoria era diferente da identificação de faixa etária que eu usava.
Depois fiquei sabendo: meus dois gigantes não estavam na maratona apenas para completar. Disputavam uma posição de honra na sua categoria, a dos homens de mais de 100 kg, mulheres de mais de 70 kg, celebrados como Clydesdale, apadrinhados pela conhecida raça de cavalos grandes, fortes, resistentes, e Athena, a deusa grega.
Só tomei conhecimento dessas divisões nessa prova na Califórnia em meados da década passada. Mas, em corridas de rua e triathlons nos Estados Unidos, o esforço de homens e mulheres pesados é homenageado em categorias próprias desde meados da década de 1980.
Não se trata apenas de reconhecimento das diferenças — mesmo que ambos estejam em ótima forma, correr é mais fácil para um ser que carrega 60 kg do que para um que precisa deslocar 100 kg. É uma forma de inclusão esportiva, uma maneira de dizer: vocês também fazem parte da nossa turma.
Mais ainda: é uma forma de dizer que a nossa turma é múltipla, diversa, diferente entre si, e que cada um deve ter seus direitos, desejos e prazeres respeitados. E há muito prazer em correr, mesmo que não seja para quebrar recordes, mesmo que não seja para vestir roupas e acessórios fulgurantes — ou que seja —, mesmo que não seja para contar nas redes sociais ou registrar em arquivo próprio, secreto e sagrado.
Foi o que vi e vivi em uma meia-maratona em São Paulo, no início da década passada. Cheguei atrasado para a largada, cruzei sozinho o pórtico para registrar meu chip e segui correndo pelo asfalto vazio. Aos poucos, fui encontrando gente, gente que nunca antes havia visto em corrida, maratona, meia, 10 ou 5 km. Era o povo do fundão, sempre distante de mim (pelo menos naquela época).
Senhoras, homens mais velhos, jovens também, recém descobrindo os encantos do asfalto, gordos e magros, havia de tudo por ali. “Mas será que não são diferentes de mim?”, talvez eu tenha pensado naqueles instantes de dezenas de ultrapassagens. Será que não eram inferiores? Piores? Aqueles seres tão mais lentos do que eu, lerdo também?
Estando na corrida, parece inevitável estarmos sempre em competição. No km 39 de uma maratona nos cafundós do noroeste norte-americano, enfim passei por uma senhora mirrada que, logo fiquei sabendo, estava, aos 67 anos, fazendo sua estreia na Maratona do Lago Tahoe.
Emparelhados, ela me disse que tinha percebido a minha chegada e que sabia, com certeza, que eu não iria suportar por muito tempo ficar atrás de uma velha (bem, ela estivera à minha frente por quase 40 km). Conversamos por algumas centenas de metros e, então, no vigor dos meus cinquenta e poucos anos, a ultrapassei.
Quando já ouvíamos a algazarra do povo na área de chegada, ela me ultrapassou definitivamente. Para mim, foi uma satisfação ver sua alegria, explosão de aprendizado. Havia, porém, em algum canto do peito, um verme de fel me martirizando por “perder”, maldizendo a “adversária”, mesmo tão surpreendente e calorosa.
Costumamos, em conversa de bar, celebrar a comunhão que a corrida traz. Mas o oposto está sempre presente, subjacente a nós mesmos: o preconceito, o desprezo, o desrespeito, a covardia, a segregação, a inveja. Querer ser diferente entre os diferentes, ser “diferenciado”.
Não poucas vezes, há quem tente fazer valer, na multidão, seu desejo, sua vontade, como se apenas ela importasse. “Sai da frente!” não é um grito incomum de ser ouvido nas ruas, em geral vindo de alguém que atropela e usa os cotovelos como arma, correndo como se disputasse o recorde mundial de qualquer coisa — na verdade, não passando de um borra-botas tão igual ou tão diferente quanto qualquer um de nós, pangarés autoglorificados.
O fato é que qualquer um de nós pode ser campeão de si mesmo, participando ou não de corridas, sendo veloz ou menos rápido, usando GPS ou passeando com as mãos nuas, os pés descalços ou protegidos por calçados miliardários.
Todos que estão no asfalto superaram ou lutam para superar a preguiça, buscam conquistar um espaço para si, se apresentam nas ruas despidos das máscaras usadas no cotidiano, desvendam a si próprios. Há quem dispare, há quem caminhe, há quem converse e quem mergulhe num universo musical particular.
A corrida aceita tudo e a todos. Os problemas surgem quando alguns não aceitam a mágica da corrida, se fazem de mudos e surdos aos apelos do asfalto, se desencontram e se enfrentam.
Eles — e todos nós, em algum momento — fariam melhor em abrir seus corações e mentes, deixar fluir o suor que os anima e liberta, ouvir a voz dos ventos que trazem, desde longe e sempre tão perto, as lições do lago Tahoe (que é onde cada um está, aqui e agora).
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