Arquivo pessoalFoto: Arquivo pessoal

Livro de repórter do Sportv desvenda segredos dos corredores quenianos

Atualizado em 11 de julho de 2018
Mais em Papo de Corrida

O amplo domínio de corredores quenianos em grandes provas de média e longa distância faz com que o mundo se pergunte quais são os segredos dos atletas nascidos e criados no país do leste africano. Selecionado pelo Passaporte Sportv – projeto que envia jovens repórteres a diversos destinos do mundo –, o jornalista Plácido Berci viveu sete meses no Quênia e mergulhou no mundo dos corredores. As experiências do primeiro correspondente esportivo brasileiro na terra de Paul Tergat, Eliud Kipchoge e outras lendas do esporte foi transformada no livro “Nuvem de Terra”, publicado pela Globo Livros.

Em 2016, Plácido viveu seis meses em Nairóbi, a caótica capital queniana, e um mês na pequena cidade de Iten, no Vale do Rift, onde vivem e treinam os corredores mais resistentes do planeta. Na terra dos kalenjin – etnia à qual pertencem os grandes corredores quenianos–, o repórter hospedou-se no hotel de Wilson Kipsang, vencedor de cinco majors, acompanhou diferentes pelotões em uma série de treinamentos, fez as mesmas refeições que os atletas e produziu reportagens sobre o escândalo de doping que quase tirou o país das Olimpíadas do Rio de Janeiro.

No fim de sua jornada pela África, constatou que o sucesso dos corredores quenianos se deve a um conjunto de fatores, não a uma suposta benção dos deuses do atletismo, como acreditam alguns. A consolidação da cultura do atletismo, a genética privilegiada – com baixos índices de gordura e corpos longilíneos –, os 2.400 metros de altitude de Iten, a alimentação com pouca carne vermelha e muitos carboidratos, além da seriedade na hora de encarar o esporte resultam nos desempenhos que ganham elogios mundo afora.

 

 

Existem várias lendas para explicar o sucesso deles. Alguns dizem que o ugali [massa que resulta da mistura entre farinha de milho e água] é o segredo. Outros dizem que é a altitude, mas nem é tão alto assim. Na América do Sul, temos cidades mais altas. O que eu vi é que lá foi criada uma filosofia de atletismo, que é seguida à risca por muitos deles. A cultura do atletismo faz com que quem não corre tenha vontade de correr. O segredo não é a alimentação, é a disciplina”, observa Plácido.

Mais do que uma imersão no mundo dos corredores quenianos, o livro é recheado de relatos curiosos sobre a cultura local e as diferenças entre o Brasil e a África. Como escreveu no prefácio o jornalista Marcelo Barreto, também do Sportv, “’Nuvem de Terra’ nos convida a ver o Quênia com os olhos de quem quer aprender”.

Abaixo, um pouco do bate-papo que a reportagem do Ativo teve com o autor de “Nuvem de Terra”.

Os segredos dos corredores quenianos

Alimentação 

No Vale do Rift, as comidas são muito naturais. É uma região muito rural, com presença de fazendeiros de médio e grande porte. Existe ali a cultura da agricultura de subsistência, com legumes naturais, sem agrotóxicos. Eles costumam comer proteína três vezes por semana. E é muito difícil comerem carne vermelha.

Eu morei em Iten por um mês e emagreci quatro quilos. É uma alimentação muito diferente, com muitos carboidratos. Eles também tomam muito chá, uma espécie de herança que adquiriram dos britânicos. A primeira refeição do dia é apenas um chá.”

Disciplina

Boa parte dos corredores quenianos mora em campings, que geralmente pertencem a italianos. Cada um tem em média 20 atletas. Lá, eles têm uma rotina bem disciplinada, com alimentação regrada. Eles vivem para correr e descansar. Saem para correr, voltam e ficam conversando em frente aos dormitórios. Não fazem mais nada além disso. É uma região bem pacata, muito simples.”

 

Jornalista se hospedou no hotel de Wilson Kipsang, vencedor de cinco majors

Doping

Foram 43 casos de doping em três anos. Todos os casos provocados por EPO. Eu fazia muitos boletins para o Sportv sobre o tema, mas não falava muito com os atletas sobre isso. Eu sentia que era um assunto proibido. Quando cheguei em Iten, o jornalista alemão havia acabado de divulgar o escândalo do doping. Eu via que o pessoal estava meio cabreiro. Alguns vinham e diziam que eu trabalhava com o alemão. Foi um pouco complicado.

Aos poucos, eu percebi que era a tentação de conseguir o resultado mais rápido. As pessoas que foram punidas pela Wada sofreram uma punição ainda mais severa da sociedade. Alguns atletas nunca mais passam em Iten sem serem hostilizados. O Kipsang até me disse certa vez que um atleta não se transforma em seis meses no que Wilson Kipsang demorou dez anos para se tornar.”

Estilo de vida

O que eu achei curioso na minha passagem por lá é como o atletismo pode mudar a vida das pessoas. O Kipsang, desde criança, sempre teve tino para negócio. Queria fazer com que um dólar virasse dois, queria investir em alguma coisa. Ele abriu um hotel bem simples em uma cidade queniana. Era uma maneira de ajudar a população local e de gerar empregos. Hoje, ele é uma celebridade local.

Os outros grandes maratonistas também são muito admirados. Em geral, o estilo de vida dos quenianos é muito simples. O conceito de vida ali é diferente. Eles não têm a pretensão de ter uma casa tecnológica, com TV de tela plana, por exemplo. Se eles ganharem dinheiro, é provável que queiram ter uma chácara, com sua própria horta.

O que acontece muito lá são os treinadores italianos ou britânicos apresentarem um mundo diferente a eles. O menino tem 17 anos, viveu a vida inteira no interior do Quênia e, de repente, vai correr uma prova em Londres. Ali ele descobre que o mundo é diferente. Esse tipo de viagem começa a mexer com as pretensões deles.”

NUVEM DE TERRA”

208 páginas

Editora Globo

Avaliação: bom

Preço: R$ 29,93 na Amazon (sem frete)