Papo de Corrida

Maratona de Boston: tudo sobre a major das majors

Ocupada em 1630 pelos imigrantes ingleses e principal polo político, econômico e cultural da ocupação britânica nos futuros EUA, Boston sediada anualmente a maratona mais antiga e tradicional do mundo. Iniciada em 1897, a Maratona de Boston não deixou de acontecer nem durante as duas guerras mundiais.

Sua antiguidade, histórico de provas épicas disputadas sob clima severo, em geral de muito frio, índices duríssimos requisitados para participar e dificuldade do percurso (é a major com maior desnível — nenhuma das outras tem mais subidas e descidas), fazem de Boston a quintessência da maratona.

Maratona de Boston

Caminho mágico sem volta

Desde a largada na pacata Hopkinton, a prova é uma longa jornada sem recuos, passando por cidadezinhas industriais ou belas aldeias campestres antes de chegar a Boston.

A jornada começa na luta por uma vaga. “Cinco maratonas foram necessárias para que eu alcançasse o índice, portanto passei por uma série de pequenas conquistas até me classificar”, afirma José Augusto Cobra, dentista mineiro radicado em São Paulo que competiu na edição congelante e chuvosa de 2018.

Como toda missão, a Maratona de Boston é também traiçoeira. Os primeiros 6,5 km são em descida acentuada de mais de 100 metros. Quem se empolga com a enganosa facilidade do downhill e solta as rédeas pagará o preço.

As pernas sofrem o impacto maior das descidas e o dano aumenta se a velocidade for alta. É preciso ser paciente e conservador para não queimar energias demais tão cedo.

Outra “vantagem” perigosa de Boston é o calor dos torcedores à beira da estrada estreita, mais próximos do que nas majors urbanas. A vibração pode fazer muitos correrem mais rápido do que é prudente.

A partir do km 7 começa um sobe e desce pouco acentuado e predomina um trajeto plano. Quase na metade da prova, perto do km 20, é preciso ter foco para não se distrair com os decibéis mais altos de todas as majors: as estudantes da Wellesley College são ensurdecedoras, pedem beijos e brincam com os competidores.

Terra de heróis

Quilômetro 25. Aqui começa a série de quatro colinas da bela “cidade-jardim”, Newton. “Nos próximos 6,5 km, enquanto suas reservas de carboidrato vão acabando, você sente como se estivesse nos Alpes”, escreveu na revista New Yorker o jornalista e maratonista Nicholas Thompson.

O primeiro monte, Newton Lower Falls, é uma barreira enorme. Mesmo com a baixa elevação, a rota é ampla e aberta, sujeita a fortes ventos e sem proteção contra o pior dos climas. Além disso, a subida dura quase 1 km e há poucos espectadores nesse trecho dando uma força.

Vista áerea de Boston

Seguem-se mais duas colinas, não tão longas; mas justo a última, Heartbreak Hill, é a mais acentuada. Essa ascensão surge no dramático km 32. Hora, urgente, de diminuir a passada e usar os braços para o sonho não terminar ali.

Depois da Heartbreak, ainda restam 8 km até Boston. Mais descidas perigosas e terrenos planos, e algumas curtas subidas. No km 40, a entrada em Boston oferece o último “presentinho” para os que sobreviveram: mais uma pequena, porém penosa colina. Pouco depois é possível avistar os postes de iluminação do mítico estádio de Fenway Park, casa do lendário clube de beisebol Boston Red Sox.

Finalmente, a prova e a glória da linha de chegada aguardam os corredores na Boylston Street, pertinho da Copley Square e da Biblioteca Pública, onde a jornada, que mais parece uma epopeia, termina.

Provas épicas

Entre tantas edições inesquecíveis, duas batalhas infernais disputadas em condições extremas, de muito calor ou frio, marcaram a história da Maratona de Boston.

1982: dois americanos lutam pela vitória debaixo de um céu limpo, sol forte, 22°C em média. São eles o pacato ex-garoto de fazenda de Minnesota, Dick Beardsley — vencedor em Londres 1981 e corredor sub-2h10min — e o então invicto na maratona, duas vezes campeão em Nova York e ora recordista mundial, Alberto Salazar, cubano que cresceu nos arredores de Boston.

Beardsley e Salazar correm lado a lado desde o início da prova, até o primeiro tentar uma insana fuga justo em Heartbreak Hill. Salazar não se intimida e logo está ombro a ombro de novo. O que se vê na sequência é um combate espetacular nas palavras do jornalista e maratonista gaúcho Sergio Xavier Filho, no livro Boston:

“Beardsley tentou ainda uma última fuga, só que a musculatura isquiotibial travou, e foi Salazar quem assumiu a liderança. Parecia fim de prova. Faltando menos de 2 km, Beardsley pisou em um buraco, estendeu o tendão da perna, e o nó isquiotibial se desfez. Ele estava de novo no jogo. Acelerou o que tinha, buscou o que não tinha e, desviando do público, encostou em Salazar. O recordista mundial conseguiu sustentar a vantagem e venceu com 2h08min52, apenas um segundo à frente de Beardsley. Foi a chegada mais emocionante da história de Boston, a primeira vez que dois homens completavam a prova em menos de 2h09min”.

Em 2018, a major se transforma em uma missão de sobrevivência. Os atletas são castigados com um frio intenso (média de –1°C), potencializado por ventos frontais de até 50 km/h e uma chuva incessante, que o vento torna praticamente horizontal. Todo o corpo congela, em especial os dedos dos pés, que surfam o chão nas poças infinitas.

Entre as mulheres, a vencedora da guerra foi Desiree Linden, 34, primeira americana a vencer ali em 33 anos. “Foi brutal, nunca corri nessas condições. Em alguns momentos você era simplesmente parada pelo vento”, revelou a campeã com o pior tempo, 2h39min54s, desde 1978.

A segunda colocação foi mais um dos milagres da prova. A façanha foi de Sarah Sellers, 26, uma enfermeira americana (10 horas de jornada diária) no Arizona, corredora amadora, ex-atleta universitária de 5 km, 10 km e cross country.

Era apenas a sua segunda maratona (a primeira foi a prova que a classificou para Boston). Detalhe: Sarah parara de correr ainda na universidade devido a uma séria fratura por estresse no pé esquerdo, e só voltara aos treinos depois de se casar e formar-se enfermeira, há menos de dois anos.

Vista do Franklin Park no outono

Na prova masculina, esperava-se a vitória habitual de um queniano, talvez um etíope. Ninguém apostaria em um cientista político e corredor amador, que treina só uma vez por dia porque trabalha na administração de uma escola em Saitama, Japão.

Só que o japonês Yuki Kawauchi, 31 anos, acredita poder fazer o impossível. Ele já correu e venceu três maratonas em 2018. A Maratona de Boston é sua quarta prova do ano.

Dada a largada, o japonês dispara num primeiro quilômetro camicaze feito em 2min46s. Depois é alcançado e superado, fica mais de 1 minuto e meio atrás do favorito e então campeão da prova, o queniano Geoffrey Kirui.

O clima úmido, frio e o vento tornam a prova lenta e desgastante. O medalhista de bronze na Olimpíada do Rio, Galen Rupp, abandona a prova. Kirui lidera, mas seu ritmo vai caindo. A 2 km do fim é ultrapassado por uma investida de Kawauchi, que balançava os braços excessivamente e o rosto estampado com o todo o esforço do mundo.

O japonês vence a prova em 2h15min58s, com mais de 2 minutos de vantagem sobre o queniano.

Outras lendas: as pioneiras

Até 1966 nunca uma mulher havia desafiado a barreira de gênero em Boston. Nesse ano, a universitária Roberta Gibb, de 23 anos, escreve à União Amadora de Atletismo (UAA) pedindo um formulário de inscrição. A resposta? Para a UAA as mulheres não podem competir em provas mais longas que 3 km e são psicologicamente incapazes de correr 42 km.

Tímida, Roberta não tem o hábito de protesto da sua geração, mas ama demais correr. Ainda que não inscrita, corre  a Maratona de Boston para provar que as mulheres não têm limites. Durante a prova, é descoberta. Mas os rivais, todos homens, a incentivam.

Apesar desse apoio, ela não toma água em nenhum ponto com medo de ser retirada. Mesmo desidratada e com muitas bolhas nos pés, com 3h21min40s ela cruza a linha de chegada, à frente de mais de dois terços dos homens.

Um ano depois, a ainda mais jovem Kathrine Switzer, 20 anos, entra na prova e é descoberta no km 3 pelo diretor do evento, Jock Semple, que tenta empurrá-la e arrancar-lhe o número da camisa. O namorado da corredora afugenta Semple e o casal continua correndo. A imagem do diretor atacando Kathrine é flagrada por fotógrafos e a cena roda o mundo.

Com 4h20min ela completa a maratona. No entanto, as mulheres só passam a ser aceitas na Maratona de Boston a partir de 1972. Muito graças à Kathrine, que se tornou ativista do poder feminino, criou sua ONG, organizou corridas de mulheres e pregou a igualdade no esporte.

Força contra o medo

15 de abril de 2013. Duas bombas caseiras, carregadas por dois irmãos chechenos, explodem perto da linha de chegada, ferindo 264 pessoas e matando três.

O terror não calou Boston. Pouco mais de um mês depois, cerca de 3 mil pessoas se reuniram na Boylston Street para correr simbolicamente o quilômetro que não puderam completar devido ao atentado. Em 2014, a prova bateu recorde de arrecadação para caridade — cerca de 40 milhões de dólares. Mais do que isso, Boston tornou-se um símbolo contra a violência e a intolerância.

Assim nasceu o movimento de resistência Boston Strong, comovente, por exemplo, na participação nos anos seguintes de pessoas que perderam pernas no atentado e correram a Maratona de Boston em cadeiras de rodas ou com próteses.

Bandeira do movimento #BostonStrong

Nem toda a dor de 2013 apagou a força e a verdade de um dos slogans da prova: You start as a runner. You finish as a Boston Marathoner. Você começa como um corredor. E termina como um maratonista de Boston.

Curiosidades

• Só uma maratona é mais antiga, um aninho, que a Maratona de Boston: a prova da I Olimpíada moderna, em Atenas 1896.

• O unicórnio é o símbolo da Associação Atlética de Boston (B.A.A.), que criou e organiza a maratona. Do mito grego antigo, o animal representa a busca da excelência inalcançável.

* Por Zé Augusto de Aguiar

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