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A Maratona de Londres não é só anfitriã de performances memoráveis, como o tricampeonato (2015-2017-2018) conquistado pelo queniano Eliud Kipchoge, recordista mundial e maior nome da história da maratona; ou os dois recordes mundiais vigentes entre as mulheres*, as assombrosas 2h15min25s da inglesa Paula Radcliffe, em 2003, e as 2h17min01s da queniana Mary Keitany, em 2017.
Os 42 km da terra da Rainha são também os mais solidários. Há 12 anos nenhuma outra maratona do planeta, ou evento de um dia de qualquer área, arrecada mais dinheiro para a caridade do que a prova inglesa. Para se ter uma ideia, foram 63,7 milhões de libras na última edição.
Dysart Arms Pub, Londres, final de 1978. Um grupo do clube de corrida Ranelagh Harriers narra entusiasmado o ambiente que vivenciaram na Maratona de Nova York, em especial o número de participantes — mais de 10 mil — e o apoio do público durante toda a prova.
Ouvindo os relatos, os jornalistas Chris Brasher e John Disley, do jornal The Observer, ficam curiosos mas não botam muita fé se a experiência pode ser repetida na capital britânica. Os motivos? Na cidade, a tradicional maratona Politécnica não reúne mais do que 20 gatos pingados na disputa, e essa e qualquer outra prova país afora reúnem o mesmo número irrisório de espectadores, entre homens e vacas…
A descrença, porém, é cutucada pelo poderoso DNA corredor e empreendedor da dupla. O galês Disley e o inglês Brasher foram bronze e ouro na mesma prova, os 3.000 metros com obstáculos, nas Olimpíadas de Helsinque de 1952 e Melbourne de 1956.
Brasher foi, ainda, em 1954, um dos coelhos no histórico dia em que seu amigo Roger Bannister tornou-se o primeiro homem a correr a milha em menos de 4 minutos. E nos anos 1970, a dupla foi sócia em um tremendo sucesso, uma refinada loja e depois distribuidora de tênis esportivos, a The Sweat Shop.
Os dois decidem correr a Maratona de Nova York em 1979 e apaixonam-se pelo calor humano do evento. Brasher descreve a experiência no artigo “A maior corrida da raça humana”.
Apoiados por Donald Trelford, editor geral do The Observer, Brasher e Disley se reúnem com membros importantes do governo municipal, polícia, turismo e associação de corredores e conseguem vender a ideia da maratona.
A ressalva do conselho municipal, que inicialmente se opõe ao evento, é que não dará um tostão para a prova. As 75 mil libras necessárias para realizar o evento são obtidas com o patrocínio da Gilette.
Mais que uma missão e conquista pessoal, significado da maratona para a maioria dos que têm a coragem de enfrentá-la, a Maratona de Londres se tornaria única por seu espírito coletivo, marcante desde a sua primeira edição.
Em 29 de março de 1981, 6.255 competidores completam a primeira maratona moderna da cidade. A corrida entraria para o livro de ouro do esporte pela conduta dos seus mais destacados atletas, o jovem americano
do interior do Minnesota, Dick Beardsley, que baixara seu tempo em mais de meia hora desde 1977 (2h43min para 2h13min) e o norueguês Inge Simonsen, sexto colocado na Maratona de Nova York em 1980.
A dupla corre quase toda a prova lado a lado. Na metade do quilômetro final, o público espera qual dos dois tomará a frente, mas Simonsen se dirige a Beardsley e fala algo em voz baixa. O americano não entende a fala,
soterrada pelo clamor do público, mas percebe a intenção do escandinavo, se aproxima e levanta a mão do rival.
Ambos cruzam juntos a linha de chegada, de mãos dadas, com a melhor marca de suas vidas, 2h11min48s. A união os tornaria amigos para o resto da vida. Entre as mulheres, o primeiro lugar e o recorde britânico de 2h29min57s ficam com a britânica Joyce Smith, 43 anos, mãe de dois filhos.
E um dos pais da prova, Chris Brasher, 51 anos, corre sua menina dos olhos em menos de 3 horas. Ao longo de sua história, Londres assistiria outras atuações incríveis, mas talvez nenhuma como aquela que muitos chamaram de a melhor maratona já corrida até então, fossem homens ou mulheres.
O feito é da inglesa Paula Radcliffe. Em 2003 ela pulverizou em quase 2 minutos o recorde mundial (dela mesmo). Mais do que isso, um estudo científico americano de 2014, publicado no Journal of Applied Physiology, indicou que o recorde de Paula seria o equivalente feminino à maratona de 1h59min para os homens.
Os segredos da fantástica maratonista? Sua resistência absurda ao limiar de dor; uma evolução de 15%, ao longo da carreira, em sua economia de corrida e talvez sua vantagem maior: uma força mental superlativa.
“Eu corria como eu me sentia. Eu tinha um mantra de ‘sem limites’ na minha carreira. Então nunca corri para atingir certos tempos na metade da prova ou em qualquer outro trecho. Para que estabelecer um limite? E se você se sentir melhor que isso? O que vai fazer? Vai diminuir o ritmo?”, revelou Paula ao jornalista inglês Ed Caesar.
A Maratona de Londres é uma prova rápida, quase toda plana e ocorre, geralmente, com temperaturas quase ideais para uma maratona, entre 10°C e 15°C e sob ventos fracos. Por isso atrai tantas feras da elite mundial.
Já a beleza e os marcos históricos do trajeto, boa parte acompanhando o Rio Tâmisa, apaixonam os corredores de toda a Grã-Bretanha e do planeta. E para os roqueiros, uma motivação extra são os poucos, mas marcantes pontos onde bandas jovens ou moradores com seus aparelhos de som tocam o melhor rock do mundo!
De Beatles e Rolling Stones a Iron Maiden, Pink Floyd e Queen, as canções são um poderoso combustível extra.
O percurso começa em uma área verde de Greenwich, simplesmente o marco meridiano que determina o horário mundial.
Entre os km 5 e 8, atravessa-se uma área industrial em ligeiro declive. Perto do km 10, “a sensação é atravessar um portal para um ambiente de muita cor e barulho”, afirma a ex-diretora da prova, Lisa Thompson.
Nesse momento a corrida se aproxima do veleiro Cutty Sark, a histórica última embarcação do transporte de chá entre a China e a Inglaterra, na era de ouro do comércio das ervas que fazem a bebida essencial britânica.
Antes do veleiro, a prova passa pelo Old Royal Naval College e Greenwich University. Na sequência atinge-se Surrey Quays e a Jamaica Road, local de uma das maiores concentrações de público.
A metade da Maratona de Londres é atingida na imponente Tower Bridge, que cruza o Tâmisa e fica ao lado da Torre de Londres. O entusiasmo do público é intenso em toda a ponte.
Na parte final, depois da Torre de Londres, entra-se no bairro indiano e os últimos 6 km empurram os maratonistas com verdadeiros ícones da cidade.
Como não se empolgar ao avistar a London Eye, a famosa Roda Gigante do Milênio, e depois o mais famoso relógio do planeta, instalado no Big Ben? Como não superar as dores ao aproximar-se do Palácio de Buckingham
e da porta da Rainha Elizabeth? Toda essa maravilha visual leva os competidores até a Avenida The Mall, em frente ao Palácio de St. James, já na chegada da prova, que mais parece um festival e museu histórico vivo.
A segunda edição da Maratona de Londres, em 1982, marcou o primeiro boom da solidariedade britânica, que só cresceria nos anos seguintes. A responsável foi a campeã do ano anterior, Joyce Smith, que correu a prova como embaixadora da pesquisa contra a leucemia.
Apoiada por uma campanha na Radio Times, Joyce arrecadou mais de 1 milhão de libras para essa causa. Entre os corredores comuns em Londres, mais que o desafio da maratona, predomina esse espírito solidário.
Cerca de 75% dos competidores correm por uma causa humanitária e um terço de todas as vagas é oferecido para instituições de caridade. E ainda mais incrível é que 55% dos britânicos que se inscreveram para 2019 jamais correram uma maratona antes.
Ou seja, querem enfrentar um desafio pessoal imenso para ajudar uma causa — combater o câncer e outras doenças severas; melhorar a vida dos deficientes; ajudar os mais pobres, os idosos etc.
O sistema de doações é complexo, porém eficiente. No Golden Bond (Laço de Ouro), cerca de 750 entidades compram a entrada todo ano no evento por 300 libras e então oferecem aos interessados que não foram sorteados para a prova.
Os corredores aceitos nesse esquema (cerca de 15 mil) precisam levantar pelo menos cerca de 1.600 libras para a entidade que apoiam. Outras 550 instituições participam no Silver Bond, entrando no evento a cada cinco
anos e gerando mais vagas aos corredores doadores.
Além disso, a empresa que organiza a prova, a London Marathon Event, destina milhões de libras todo ano ao seu próprio fundo de caridade, o London Marathon Charitable Trust. Essa verba é distribuída para construir
e melhorar instalações esportivas e de lazer por toda a Londres.
Mais de 1.130 projetos já rolaram nesse sentido e o fundo de caridade ainda criou o London Marathon Playing Fields, um programa de proteção e melhoria dos parques esportivos da cidade.
Ou seja, a Maratona de Londres é uma verdadeira celebração democrática e caridosa de todo tipo de pessoas, classes sociais e nacionalidades. É também um exemplo de como um só evento pode melhorar a qualidade de vida — oferecendo mais esporte, lazer e saúde — em uma metrópole.
Uma lição de empatia para o mundo todo que começou logo em sua primeira edição: “Aí está, a mão da amizade”, disse o comentarista da BBC, David Coleman, quando Dick Beardsley ergueu a mão de Inge Simonsen em 1981, segundos antes de eles vencerem juntos a prova.
Essa amizade, semeada ano após ano nessa prova tão bela, nos lembra que sempre teremos Londres para sonharmos com um mundo e uma humanidade melhores.
*O recorde de Paula, de 2003, foi obtido em uma prova com largada mista, junto dos homens, e ela aproveitou o ritmo de pace makers masculinos. Já a marca de Keittany, cravada em 2017, veio em uma corrida com largada
separada, ou seja, uma prova exclusivamente feminina. A Iaaf reconhece os dois recordes.
**por Zé Augusto de Aguiar
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