Papo de Corrida

Mario Sergio, o homem das mil faces

Mario Sergio Andrade e Silva é um homem de múltiplas funções. Triatleta e nadador de ponta, enveredou cedo na carreira de treinador e logo tornou-se o empresário que fundou a Run&Fun em 1994, uma das maiores assessorias esportivas do Brasil.

O sucesso como homem de negócios não o afastou do esporte nem de outros projetos. Continuou a treinar com afinco, correu maratonas e outras dezenas de provas e, em paralelo, lançou o livro Corra (que vendeu mais de 10 mil cópias), geriu o Parque do Ibirapuera e fundou uma associação que, de 1999 a 2017, ajudou mais de 3 mil crianças, adolescentes e seus familiares por meio do esporte.

Nesta conversa, Mario Sergio fala sobre sua carreira e realizações, mas também dá sua opinião sobre a utilização do espaço público na cidade de São Paulo e a privatização dos parques estaduais, além de analisar, sempre com um olhar crítico e rigoroso, o mercado de corrida brasileiro e as inovações e mudanças dos métodos de treinamento.

Mario Sergio Andrade e Silva

Aos 52 anos, como você sente as mudanças no corpo quanto à prática de esportes?

Mesmo desde cedo fazendo atividade física sinto a idade chegar, até porque não mantive nos últimos 15 anos um treinamento de intensidade. Mas o que eu falo para os meus atletas e para mim mesmo é que temos de nos adaptar à idade, não dá para ficar com o pensamento do “tempo que eu fazia quando jovem”… Isso não ajuda em nada.

Em vez disso, comecei a trabalhar nas minhas deficiências: primeiro, perder peso (fundamental sempre), depois a inclusão, no meu caso, do trabalho funcional (algo que descobri nos últimos anos e achei de grande valia para todo esportista e, principalmente, para o corredor). Voltei a correr em ritmo mais lento e aos poucos fui aumentando a distância e o ritmo. 

Hoje, sinto que encontrei o meu ritmo, não tenho mais dores e me sinto muito mais disposto. Quando envelhecerem, as pessoas devem repensar os treinos e, principalmente, a alimentação. Deve-se comer menos e melhor e ficar muito atento aos exames. Em breve retomarei os treinos de natação e assim farei sete treinos semanais (três de corrida + dois de funcional + dois de natação).

A natação ocupou boa parte da sua infância e adolescência e te proporcionou várias conquistas. Como foi a troca de esporte para a corrida?

A natação me acompanha desde os 4 anos. Comecei a competir com 8 e, aos 13, passei a treinar dez sessões por semana (quatro treinos dobrados pela madrugada, mais sexta e sábado). Nesse período, nosso treinador incluiu a corrida como forma de aumento do condicionamento físico e, como entre garotos tudo virava competição, éramos dezenas de corredores “trotando” no início e acelerando depois.

Fazíamos 6 km quase como prova duas vezes por semana, aí a minha paixão pelo esporte começou.

E continuou aumentando até chegar à maratona…

Eu sempre tive uma relação com a maratona. Desde criança acompanhava os corredores dessa prova nas Olimpíadas e isso me fascinava. Assim, nos treinos gostava de correr 10 km, 12 km, 15 km. Mas provas, fazia apenas as de 6 km, que eram as que tinham no início dos anos 1990.

Em 1995 fiz a minha primeira maratona e foi uma sensação indescritível. Foi na Maratona de Blumenau. O desafio já começou na ida para a largada, que foi feita de ônibus, passando pelos 42 km e olhando todo o percurso de volta. Isso é que foi trabalho mental…

Depois, fiz várias meias e provas de 10 km, mas de todas, as de que mais gostava eram as meias, pois eram longas (sempre gostei de endurance), mas não me deixavam tão quebrado quanto a maratona.

Você também competiu no triathlon, certo?

Sim, quando eu estava parando de competir como nadador, fiz uma incursão no mundo do triathlon/biathlon. Ganhei os dois primeiros biathlons que houve em São Paulo. Inclusive, nesses dois eventos venci triatletas que seriam grandes nomes do esporte, como Marcello Butenas e Antonio Mansur. Era engraçado, porque eu estava nadando muito na época e saía bem na frente. Depois via os caras babando para me pegar. Isso me aproximou mais ainda da corrida.

E hoje, ainda treina?

Sim, corro de três a quatro vezes por semana, uns 5 km a 8 km por sessão. Corro devagar, mas adoro a sensação que a corrida proporciona, o meu dia começa de outra maneira quando corro. Além disso, faço funcional duas vezes por semana e tenho nadado uma vez por semana (mas quero voltar a nadar mais). Também uso bastante a bicicleta como transporte na cidade, assim tenho me mantido bem ativo. Quero correr 15 km na maratona da cidade do Porto, em Portugal, em novembro. E, quem sabe, em 2020 correr uma meia.

Como foi a transição do atleta para o treinador?

Paralelamente às competições, vi que no início dos anos 90 havia alguns treinadores orientando executivos e ganhando para isso e pensei: “Ué, isso eu sei fazer!”. E foi assim que começou a Run&Fun. Diferente de alguns treinadores que começaram dentro de academias, já tendo seu público, eu comecei do zero, dando treino para a minha esposa na época e, depois, para os alunos que foram aparecendo via indicação.

Como foi o salto de uma empresa quase familiar para a Run&Fun, que é, desde o início dos anos 2000, uma das maiores assessorias esportivas do Brasil?

Nos primeiros cinco anos foi um crescimento tranquilo, vindo principalmente da indicação de clientes. Porém, no final dos anos 1990 fui indicado por um amigo/atleta para desenvolver um programa de qualidade de vida na Unilever. Com isso, começamos a receber muitas empresas interessadas nas soluções que criamos e o crescimento foi acelerado.

Que desafios você vê hoje para uma empresa como a Run&Fun e outras assessorias similares?

Hoje em dia todos os mercados estão enfrentando os desafios da inovação em todas as áreas. Há uma mudança do cliente, já que, devido à tecnologia, as pessoas sabem (ou acham que sabem) muito sobre diversos assuntos. A minha visão é continuar desenvolvendo um trabalho que possa ser considerado sempre de alta qualidade e sem perder o ritmo da inovação — incorporando a tecnologia sem perder o diferencial de estar próximo. Ganhar escala sem perder o touch de exclusividade. Porém, acho que esse desafio é geral, não só em nosso mercado.

Como tem enxergado o mercado de corrida brasileiro nos últimos tempos?

Temos de olhar os números com calma, primeiro porque o boom pode ter diminuído, mas esse mercado tem um funil de entrada maior do que de saída. A cada dia, milhares de pessoas começam a dar os primeiros passos na corrida. São os caminhantes de fim de semana ou corredores iniciantes que começam a dar seus trotes no parque.

Além disso, a maioria dos corredores pode até abandonar as provas e as suas assessorias, mas continuam correndo. Com uma melhora econômica, veremos mais gente nas provas, comprando tênis e treinando. Ainda tem muita gente fora desse mercado e não podemos esquecer que nosso maior concorrente não são as assessorias, mas, sim, o sofá.

Como surgiu a ideia de criar uma nova assessoria on-line em vez de explorar a Run&Fun também no ambiente virtual?

Essa história é interessante! No início de 2014 a Endeavor (organização norte-americana de apoio a empreendedores) me fez o seguinte convite: “Mario, estamos indo para um curso de inovação que durará quatro meses e se iniciará em Boston, na Babson College, e acabará em Stanford. Você toparia ir? Serão 34 empreendedores de pequenas e médias empresas”.

Claro que aceitei e isso se tornou uma das coisas mais impactantes da minha vida. Estar no olho da inovação mundial e visitando empresas como Google, Salesforce, Ideo foi uma das coisas mais bacanas que já vivi. Saindo de lá, consegui ser o primeiro da turma a implantar uma nova startup. Foi daí que nasceu o Soürun.

Como é essa nova forma de se relacionar com o cliente/aluno?

A empresa enfrenta as dificuldades que o B2C (business-to-consumer) enfrenta: necessidade de investimento na captação de leads (processo de atrair novos clientes). As notas dadas para o nosso serviço são muito boas, mesmo sabendo que podemos fazer muito melhor. Eu vi o nascimento dos apps americanos de corrida e o que sempre me incomodou foi o jeito meio “largado” que os treinos eram enviados. Assim, colocamos a figura do treinador real para atender os alunos. Hoje são 1.300 atletas toda semana treinando por meio do nosso app.

Criar uma assessoria online foi uma forma de se posicionar com relação à influência de youtubers ou coachs online?

Quando pensei no Soürun, queria mesmo era democratizar o treinamento de corrida, poder atender corredores que não tinham acesso a treinos de qualidade, com a figura do treinador acompanhando. Os influencers e youtubers estavam nascendo. Sobre esse assunto, teremos uma adequação, um momento em que o consumidor separará o joio do trigo. Não é porque a pessoa tem um corpo sarado que pode falar de treino e nutrição, ou porque corre bem que tem o conhecimento necessário para treinar uma pessoa e cuidar da saúde dela. Defendo sempre o conhecimento e devemos procurar quem estudou e estuda para isso.

Você alguma mudança na forma como as pessoas encaram a corrida, as provas e os métodos de treinamento da época em que começou com a Run&Fun?

O maior desafio é manter o nosso cliente motivado a treinar e fazê-lo da maneira que achamos correta. Temos muito claro um padrão de trabalho, porém, devido à quantidade de informação disponível, temos muitas vezes de convencer o corredor, que nos paga para treiná-lo, de que ele deve seguir o que preconizamos. Os métodos evoluem e muitas vezes também o que era feito no passado se mostra correto ou não.

O importante é continuarmos firmes no propósito de unir a experiência prática de termos treinado mais de 15 mil corredores com os estudos que aparecem e que mostram que podemos atualizar os treinos de corrida e também a preparação física dos corredores.

As melhoras nos métodos de treinamento nos últimos anos entre os atletas de elite chegaram até o corredor amador?

Acho que sim. Aqui na Run&Fun mudou muito, e isso é algo que beneficia o corredor amador — ou deveria beneficiar. Usamos o treinamento polarizado por acreditar que ele funciona melhor para o profissional e também para o amador. Trabalhamos junto com fisiologistas, preparadores físicos na área de força, nutricionistas, fisioterapeutas e com os melhores nessas áreas, e posso dizer que, sim, muita coisa tem mudado para melhor.

Como fica toda essa metodologia na cabeça do corredor, influenciado por todos os lados?

 Vejo muita gente postando todo dia treinos fortes e longos e isso, na minha opinião, está bem errado. O ideal é saber fazer força na hora certa, fortalecer fora do treino e estar com o melhor peso possível.

Com tantas informações, fica difícil para um atleta amador filtrar as melhores estratégias, não?

Quantas pessoas se automedicam, né? E, detalhe, têm condições de ir aos melhores médicos. Eu, quando contrato um advogado, quero que ele me oriente para que eu não faça besteira e me arrependa no futuro. O corredor tem de amadurecer e entender que se ele contrata um treinador deve confiar nele e fazer o que ele pede após as provas-alvo. Se por acaso não tiver funcionado, ambos devem sentar e analisar onde podem melhorar. Agora, ficar alterando o tempo todo a programação de treinos e, principalmente, os ritmos prescritos, não dá certo. É o mesmo que querer fazer um bolo e ficar mudando a quantidade de fermento e açúcar… vai sair bom? Até pode ser que sim, mas também pode desandar e, com certeza, não será a mesma receita.

Você comentou que usa a bicicleta como meio de transporte. As ciclovias e ciclofaixas foram priorizadas na gestão Haddad, em São Paulo, mas deixadas de lado nas gestões posteriores. Como vê essa questão?

As ciclofaixas continuam em São Paulo como estavam. Não tiveram mais ampliação. Porém, temos uma malha muito boa, ainda mais quando se passa pelos bairros mais centrais, como eu faço. Assim, para mim, elas têm sido muito úteis como forma de transporte e também como atividade física.

Você foi gestor do Ibirapuera, tocou projetos na USP… Como vê a utilização dos espaços públicos hoje em São Paulo para a prática de esportes?

São Paulo teve, com os últimos quatro prefeitos, uma melhora na abertura de novos parques e praças para treinos. A cidade ficou com mais opções do que no passado. Mas somos 12 milhões de habitantes, logo, ainda são insuficientes. Por isso, o Ibirapuera e a USP são locais fundamentais na criação da cena de esportes. O parque é central e possibilita a milhares de pessoas treinarem com aquele visual cheio de árvores, plantas e bichos. Na USP, temos um espaço superimportante para ciclistas (um dos pouquíssimos da cidade) e outro com várias opções para o corredor. Esses microcosmos são um espelho de nossa sociedade e suas gestões devem respeitar as tribos e as pessoas que lá habitam ou trabalham.

Livro Corra, que já vendeu mais de 10 mil cópias

O que deve ser feito nesse sentido?

Vejo uma necessidade de regramento para que todos possam usufruir desses locais respeitando o espaço, a fauna e flora. Não dá para colocar caixa de som tocando música alta sem se importar com as pessoas e os bichos. Muito menos andar rápido com o carro ou mesmo pedalar usando as três faixas de trânsito e achar isso normal. Torço para que encontremos uma maneira boa de convivência nesses espaços, afinal, estamos falando também da promoção de saúde.

Qual é a sua opinião sobre a privatização dos parques? Acha que isso pode criar maiores dificuldades para as assessorias que usufruem o espaço?

Pode ser muito melhor. A concessão (não privatização) dá oportunidade de profissionalizar e melhorar os serviços que hoje a prefeitura oferece com dificuldade. Além disso, essa concessão traz junto o compromisso de ajudar outros parques periféricos; assim, ao pegar o Ibirapuera, vêm junto outros parques na periferia, onde a população será mais bem atendida. Sendo assim, sou favorável. Mas temos de ter preocupação com que tudo fique bem claro no plano diretor, ouvindo os diversos grupos que utilizam os parques.

No caso, quais seriam pontos importantes a serem abordados pelas assessorias esportivas?

No nosso caso, fomos à assembleia nos posicionar contra um equívoco que estava acontecendo no plano diretor, que era alterar os horários e o local de treino das assessorias, concentrando todas no mesmo espaço. Nós, que lá estamos há 26 anos, junto com outras assessorias, vimos que isso não faz sentido e nos posicionamos. Aliás, poucos treinadores e assessorias o fizeram. Uma pena! Porém, tanto a prefeitura como a empresa que ganhou a concessão mostraram todo o interesse em corrigir esses erros. Se isso continuar assim, todos podem ganhar.

Você fundou a ONG Associação Esporte Solidário. Gostaria que falasse um pouco sobre esse projeto.

De 1999 a 2017 ajudamos mais de 3 mil crianças, adolescentes e seus familiares por meio do esporte. Foram investidos milhões de reais na capacitação e atendimento dessas crianças e tenho muito orgulho de ver que algumas delas saíram do crime para trabalhar e crescer profissionalmente. Mesmo as que não tiveram êxito no esporte sempre demonstraram muito respeito e admiração pelo que fizemos.

Infelizmente, em 2017, logo após a saída da Dilma, nossos projetos não foram aprovados por falta de gente no ministério e, com isso, tive que tomar a difícil decisão de suspender os atendimentos e desligar as pessoas que lá trabalhavam. Mas pude contar com meus atletas e amigos, que me ajudaram muito a pagar essa conta.

Qual é o saldo do projeto nesses quase 20 anos de existência?

Hoje vejo nas crianças que atendemos adultos formados em engenharia, magistério, educação física e outros em cursos técnicos. Alguns ainda foram atuar em outros projetos na comunidade. Da semente que plantamos nasceram frutos que estão virando árvores, e isso é muito gratificante. Gostaria muito que as startups que criamos conseguissem fazer algo que pudesse ajudar a Associação Esporte Solidário de novo, mas vamos ver as cenas dos próximos capítulos.

Em 2009 você escreveu o livro Corra . Como foi essa primeira experiência de se lançar no campo literário?

Foi uma das coisas mais legais que já fiz e saber que foram vendidas mais de 10 mil cópias me deixa muito orgulhoso. Até hoje as pessoas me param nas provas pelo País e falam que começaram a correr depois de ler o livro, e isso me enche de alegria.

Tem pretensões de lançar outros livros ou foi uma experiência única?

Gostaria de escrever um livro com uma nova abordagem, pois mudamos muito dentro da Run&Fun. Na nossa equipe técnica temos pessoas com doutorado, mestrado e várias pós-graduadas. Isso, junto com a experiência prática de 26 anos, deve ser compartilhado. Assim que conseguir começo o projeto e gostaria de escrever um outro sobre as histórias e “causos” nesses 26 anos. Tem muita história legal e engraçada.

Décadas de carreira, uma assessoria de sucesso, projetos beneficentes e públicos, livro lançado… Você se vê como um pioneiro, uma influência?

Acho que sim. Na verdade, ouço isso de muitos colegas da minha área, que dizem que se inspiram em nosso trabalho e em nossa empresa. Isso, por um lado, me enche de orgulho, mas por outro, deixa clara a responsabilidade que temos ainda pela frente.

*Por Fausto Fonseca

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