Depois de concluir a Maratona de Porto Alegre do ano passado em 3h59min, Érico Duarte cismou que tinha de terminar a de São Paulo, este ano, em 3h49min, no máximo. A uns 200 metros da linha de chegada, no entanto, avistou o mais doce dos obstáculos: grudada na grade, a esposa dele o aguardava com a filhinha Gabriela, que tinha então menos de um ano, no colo. Não teve dúvidas: botou a criança no cangote e cruzou a linha de chegada. Registrou o tempo de 3h50min, mas na mais pura felicidade.
A paternidade tornou Érico Duarte mais emotivo. O advogado de 39 anos tem remota ascendência nipônica — o ramo oriental da família dele fincou raízes no Brasil há quatro gerações. Na largada das provas mais importantes, como aquelas de 42 km, seus olhos ligeiramente amendoados vertem uma ou duas lágrimas. Por esse motivo, adotou o hábito de, poucos minutos antes das provas, desligar-se da pulsão carregada de adrenalina que antecede o acionamento do cronômetro. É hora de lembrar que correu um grande risco de não estar lá, de não poder correr, de morrer.
A mais longa maratona que Érico disputou na vida durou 7 horas, e ele a percorreu deitado, numa mesa de cirurgia do hospital Sírio-Libanês. Como toda maratona, exigiu muito nos meses antecedentes. Diagnosticado em setembro de 2009 com um tumor no cérebro, ficou sem saber até dezembro daquele ano se poderia ou não se submeter à cirurgia, porque o local afetado era uma área muito delicada. Nesse período, passou por 18 exames de ressonância magnética. Nesse período, ficou a pensar nos riscos: o de morte, inclusive; poderia ter também sequelas graves e irreversíveis, como a perda da fala e falhas motoras no lado direito do corpo, no braço e na perna.
Érico Duarte passou incólume pela cirurgia — a única sequela é um comprometimento mínimo da fala. Quando está muito cansado, ele troca o “r” pelo “l” e vice-versa. Se estiver concentrado, faz sustentação oral em audiências e julgamentos sem problemas. O grande teste ocorreu neste ano, e Érico foi aprovado com louvor: comentou, sem falhas na fala, partidas de tênis de mesa dos Jogos Olímpicos no Rio pelo SporTV.
Mas por que tênis de mesa? Érico praticou o esporte durante 22 anos. Integrou a seleção brasileira ao lado de Hugo Hanashiro e Gabriel Ogata na Universíade de Pequim, em 2001, e chegou a morar na Suécia para melhorar seu nível.Com o tempo, porém, os estudos em direito e os primeiros anos de exercício da profissão lhe roubaram as horas que teria de dedicar aos treinos.
A corrida entrou na vida do mesatenista como aquecimento. Nos tempos em que defendia o Palmeiras/São Bernardo, ao lado de feras como Hugo Hoyama, dava uma corridinha em torno do campo do Estádio 1º de Maio. “Os colegas da equipe reclamavam, mas sempre gostei daquela meia horinha. Quando dava eu ia ao Parque do Ibirapuera, dar umas duas voltas. Disputava uma ou outra provinha de 5 km, algumas de 10 km.”
Match Point
Antes coadjuvante, a corrida de rua assumiu o papel principal entre as atividades esportivas de Érico, entre as quais hoje se incluem o tênis e a musculação, naqueles meses de dúvida, se operaria ou não, se sobreviveria ou não.
Érico se obrigou a viver seu drama em silêncio. Seu pai, Mário Sérgio, padecia de um tumor na bexiga, e o advogado tratou de administrar o segredo como pôde. Demorou, mas chegou o momento decisivo de seu “jogo da vida”. Em entrevista ao site da CBTM (Confederação Brasileira de Tênis de Mesa), Érico disse que acordava todos os dias com match point contra: 10 x 9 para o adversário, no quinto set. “Era sempre hora de decidir e eu não podia amarelar.”
E não amarelou. Ao longo de todo esse processo, Érico não abdicou de nenhum dia de trabalho no escritório. O médico responsável pela cirurgia o proibira de andar por ao menos oito dias. No segundo, mudou de opinião, impressionado com a recuperação galopante do atleta. “Ele disse que o esporte foi fundamental para a minha recuperação. E me disse para nunca deixar de praticar esporte. Aí adotei a corrida de vez.”
Depois de dois meses, Érico Duarte voltou a caminhar no Ibirapuera. Poucos dias depois já corria. Em junho, vestiu a camiseta azul do Circuito das Estações para correr a etapa de inverno. “Foi o esporte que me salvou. O tênis de mesa é o esporte da minha vida, mas esse casamento terminou numa boa. Hoje tenho um novo amor, a corrida. Muita gente que enfrenta problemas de saúde vem me procurar para saber como superei. A lembrança que tenho de tudo isso é que sem a corrida tudo teria sido mais difícil.”
A mais ou menos esta altura do próximo ano, Érico pretende acrescentar à sua coleção de medalhas a de Chicago, sua primeira prova no exterior. De uma coisa já sabe: irá com Gabriela, sua filha, seu amuleto. Pode até se distrair e pronunciar seu nome errado, mas isso é de menos.
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