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Pernas de Aluguel: levando a corrida para todos

Atualizado em 12 de junho de 2018
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Raquel Firmino, de 52 anos, descobriu no projeto social Pernas de Aluguel uma maneira de fazer seus filhos mais felizes e integrá-los à sociedade. Lívia, de 32 anos e Eric, de 27, os dois filhos da dona de casa, tiveram a mobilidade e o desenvolvimento intelectual prejudicados pela gangliosidose GM1, um distúrbio que atingiu o sistema nervoso central de cada um deles já na fase adulta de suas vidas.

Nas manhãs dos domingos, Raquel acompanha Lívia e Eric em um passeio pela Lagoa do Taquaral, o maior parque de Campinas (SP). Lá, eles ficam sob os cuidados de dezenas de voluntários, que “emprestam” suas pernas e braços para que a dupla monte em triciclos e curta a corrida por algumas horas.

Criado em São Paulo em novembro de 2014 pelo engenheiro Eduardo de Godoy, o Pernas de Aluguel desembarcou em Campinas um ano depois e hoje é uma das maiores bases do grupo. Os encontros na Lagoa do Taquaral são semanais e têm o propósito de encurtar a distância entre os PCDs (sigla utilizada para designar pessoas com deficiência visual, auditiva, física ou intelectual) e o restante da sociedade. O uso da corrida de rua como ferramenta de integração para deficientes já atraiu cerca de 800 voluntários ao projeto em quatro cidades — Campinas, São Paulo, Hortolândia e Belo Horizonte.

O “empurrãozinho” dos voluntários por algumas horas permite que os PCDs experimentem uma série de emoções: a brisa no rosto em um dia ensolarado, a troca de afeto com pessoas que não fazem parte de seu convívio diário e a sensação gratificante de cruzar a linha de chegada em provas de 5 km, 10 km, 21 km e até 42 km.

Mas há quem defenda a ideia de que a recompensa de ser voluntário no Pernas de Aluguel é comparável à emoção dos PCDs durante as corridas.

“As pessoas vêm para cá achando que vão fazer o máximo e transformar a vida dos PCDs. No fim, elas percebem que levam um pouco mais do que trazem”, diz Raquel.

O professor de educação física Jefferson Stecca, de 28 anos, conta que vive uma emoção diferente a cada treino do Pernas de Aluguel na Lagoa do Taquaral. Arrancar sorrisos ao empurrar triciclos e ver outros participantes ganhando autoestima no projeto o motiva a sair cedo da cama aos domingos.

Corredor há seis anos, Stecca viveu um de seus momentos mais bonitos no esporte ao lado de Anderson Maia, jovem que sofre de paralisia cerebral. O professor de educação física o conduziu por todo o percurso da Maratona de Campinas do ano passado.

Nos metros finais, Stecca o tirou do triciclo e deu o braço esquerdo ao amigo para que ele estivesse com os pés sobre o asfalto ao cruzar a linha de chegada. Juntos, completaram os 42 km em 5h01min e ganharam aplausos dos presentes.

“Mesmo já fazendo provas mais longas, aquilo foi diferente de tudo”, recorda. “O Anderson me falou que, quando está correndo, se sente livre. Parece que ele está voando.”

 

 

Uma eterna adaptação

O altruísmo e a empatia pautam os encontros do Pernas de Aluguel em Campinas. Embora os integrantes chamem as reuniões dominicais de “treinos”, nenhum voluntário vai até lá pensando em desempenho. “A integração vem antes do rendimento esportivo”, explica João Marcelo Eleutério, o coordenador do projeto na maior cidade do interior paulista.

O pace e qualquer outro termo que indique competitividade praticamente não existem no grupo. O ritmo sempre é definido pela pessoa mais lenta — e não há quem vá contra isso. Os treinos sequer são registrados em frequencímetros, embora alguns integrantes calculem que, em um domingo comum, o grupo chegue a rodar até 10 km com os triciclos.

Alguns voluntários desembarcam no Pernas de Aluguel por identificação com as histórias que encontram por lá. O analista de sistemas Gilberto Mello, de 53 anos, reconheceu um pouco de sua própria trajetória quando avistou o grupo em uma prova realizada na região. Em meados da década de 1990, Mello sofreu um acidente de moto no Guarujá (SP). Na queda, seu pé direito foi esmagado, resultando na perda de três dedos. Ele levou alguns anos para recuperar os movimentos e o hábito de correr em parques.

“Foi um drama pessoal que me trouxe até aqui. Minha história prova que nem sempre essas más notícias são definitivas”, afirma.

“Abraçar” quem tenta superar algum trauma físico é uma das especialidades de uma parcela dos voluntários. Reconhecer-se no outro faz parte do processo de adaptação às novas condições após um acidente. Assim como Melo, Edson Camargo, de 40 anos, tenta adequar sua vida às limitações físicas impostas por um acidente sofrido cinco anos atrás, quando trabalhava em uma empresa de engenharia.

A história de Camargo, hoje técnico em segurança do trabalho, confirma o ditado que sugere que “a verdadeira deficiência é aquela que prende o ser humano por dentro e não por fora, pois até os incapacitados de andar podem ser livres para voar”.

Ele se desequilibrou enquanto fazia a instalação de um para-raios e caiu de uma altura de 15 metros durante um serviço no Rio de Janeiro. Acostumado a correr 7 km quatro vezes por semana na Lagoa do Taquaral antes do acidente, Camargo teve que adaptar alguns prazeres de sua vida depois de sentar em uma cadeira de rodas.

“No começo, foi muito difícil. Nossa vida muda. Temos que aprender tudo de novo. Acho que vou continuar me adaptando até morrer”, conta. “Mas estar aqui ajuda. Eu estou no clima da corrida. Estou envolvido com o esporte de uma ou outra forma, de um jeito adaptado. O negócio é estar dentro do esporte.”

 

pernas de aluguel

 

As mães agradecem

No dia 12 de março, em uma terça-feira escaldante em Campinas, Érica Konoo ria sozinha enquanto Jefferson Stecca, o voluntário que cruzou a linha de chegada da Maratona de Campinas ao lado de Anderson, preparava o triciclo para que a dupla iniciasse o passeio. A cerca de 10 metros dali, Neusa Konoo, a mãe de Érica, observava a filha sem ter de prestar nenhum tipo de assistência — algo raro nos últimos 34 anos.

Em seus primeiros dias de vida, Érica, a primogênita da família, foi acometida por uma meningite. As sequelas da infecção a acompanham até hoje. Érica não fala, só começou a andar depois dos 5 anos e, segundo Neusa, é dependente da mãe e das duas irmãs “para tudo”.

Além de proporcionarem diversão a Érica, os encontros no Pernas de Aluguel fazem com que Neusa, de 70 anos, se desligue momentaneamente de sua rotina e converse tranquilamente com outras mães. “É um momento em que as mães vêm e têm um tempo para elas. Elas podem sentar e conversar enquanto os filhos estão correndo. Todas elas sempre me relatam quanto é bom vir aqui e passar um dia diferente”, lembra Alexandra Eleutério, esposa do coordenador do projeto.