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Os personagens que habitam as corridas de rua

Sabe o que é melhor que correr? Poucas coisas. Uma delas é torcer por quem está correndo. Juro. Faço isso de vez em quando em provas. Um dia antes, você compra chocolate, balas, água, copos, bananinha, rapadura e coloca tudo em potes. No dia da prova, você acorda cedíssimo, põe a fantasia de corredor e vai para um ponto onde deve ser mais ou menos o meio da prova para dar suporte alimentício e, melhor do que isso, moral. É bom levar um apito ou qualquer coisa que faça barulho para animar a galera. E preparar o abraço e os gimme five: todos vão te cumprimentar e agradecer por você estar ali torcendo para estranhos. É incrível. 

Incríveis também são os muitos personagens que participam dessas provas. Há alguns meses fui dar suporte em uma maratona em São Paulo. Prova muito difícil, de 21 ou 42 km, levando-se em consideração a lindeza do asfalto paulistano e o sobe e desce de suas ruas.

Consegui pinçar cinco personagens nesse dia, mas deve haver muitos outros. Talvez você se reconheça um pouco em cada um. Talvez ache tudo isso uma bobagem e não se veja de jeito nenhum. Tudo bem, minha gente. O que vale é correr! Mas eu, enquanto entregava minhas bananinhas e rapadurinhas, achei estes caras e estas moças aqui:

Os que correm desde 1970

Fuja deles. Ou melhor, abra alas para eles. Você não vai conseguir alcançar esse povo da terceira idade que aprendeu a correr com o próprio Cooper. Vou te explicar por quê: porque eles já têm a casca dura, a alma forjada, a testa queimada de sol.

Nunca ouviram falar de suplemento, e de manhã caem de boca num pão com manteiga, café com leite. Acordam cedo para treinar há pelo menos 30 anos, que é praticamente a sua idade.

Tênis caro não conhecem. Pular treino nunca ouviram falar. Musculação é feita em corrida de 5 km no paralelepípedo. Tem um deles com quem eu cruzo sempre no Parque do Povo, região nobre de São Paulo. Ali, no People Park, um senhor de uns 70 anos, alto, esguio, magro, chapado frente e verso, passa por mim duas vezes por semana. Não parece ter dor, nem está ali porque tem uma meta a cumprir.

Ele corre porque gosta e, pelo corpão, faz isso há milhares de anos. A velocidade dele é constante, ele não ouve música, praticamente não transpira, nem tem tênis da moda. Passa por um, por dois, três e some. E dali a dois dias está lá de novo. 

E tem as senhoras corredoras. Que gracinhas! Elas têm mais de 70 anos e correm… sorrindo!!! Meus amigos, eu tenho 45 e corro com ódio, tudo dói. Preferia estar fazendo qualquer outra coisa que fosse. Elas, não. Elas vão indo numa certeza de que logo ali acaba. Mesmo que o ali tenha quase 90 km, porque vejo muitas delas fazendo ultramaratona!!! Sério. Elas são incríveis. Fazem a coisa toda parecer fácil.

Pode ter certeza: os senhorezinhos e as senhorinhas nunca vão te atropelar, te dar cotovelada nas peitolas numa prova para te ultrapassar ou perguntar em quantos segundos você baixou seu tempo. Sabe por quê? Porque não precisam de nada disso. Porque eles vão em frente. E, como o em frente deles é mais curto que o nosso, não têm tempo a perder com bobagens. Portanto, abra alas para eles.

As gordelícias

Eu as adoro! São de uma estima por si mesmas que faz inveja a qualquer Gisele Bündchen — que é bilionária, tem aquele corpo, aquele marido e aquele cabelo —, que ódio. As gordelícias têm como característica principal serem gordinhas, mas com pouca pança. Ou isso é uma dádiva brasileira ou passaram pelo facão de algum cirurgião plástico. Não importa. São gordelícias. E muito vaidosas. Já vi gordelícia correr de blush e batom, achei linda. E são raras as que correm sem, no mínimo, brincos e roupas combinadinhas. Que graça!

Elas têm o ritmo delas, muitas vezes fazem provas aos pares, são sorridentes e reconhecem seus limites. Podem até diminuir a velocidade da corrida, mas parar, nunca.

Porque elas chegaram até aqui, que é o mais difícil. Agora, que é só ir em frente, elas decidiram que vão. E vão mesmo, sem olhar para trás. Sou fã delas. 

Muitas correm e caminham durante uma prova. Pra que pressa, não é mesmo? Na corrida, muitas delas optaram pelos 21 km e uns quebrados. Meus queridos, vocês sabem o que é correr 21 km?? São bem umas 30 mil passadas, por quem é mais lento, em duas horas e meia ou até três horas.

Elas estavam lá, firmes e fortes, olhando para a frente. Algumas me abraçaram, mas nem todas aceitaram minhas bananinhas cravejadas de açúcar ou as rapaduras, cortadas caprichosamente em quadradinhos perfeitos. Elas não saem da dieta, seguem tudo conforme manda a tradição da corrida. Por isso estão sempre motivadas a ir cada vez mais longe. Porque, se hoje elas fazem 21, amanhã serão 42 e, quem irá nos deter?, uns 60 km logo mais. 

Os quilinhos a mais não atrapalham? Olha, por tudo o que envolve a corrida (impacto, calor, respiração, articulações), o sobrepeso certamente afeta. E daí? O lance é treinar, fazer tudo direitinho e se testar em uma prova. E é esta lição que as gordelícias deixam: não existe só um modelo de corpo para a corrida. Olhe a massa corredora em uma prova e você vai ver que elas são muitas e não estão nem aí. Vão, correm e fim. Lindas!

Os que vão para tempo

São aqueles que voam nas provas. Eu confesso: tenho medo deles. Eles são sérios, não brincam em serviço. Sabem o que dizem as pesquisas. Leem livros importantes. Falam com pessoas que conhecem a corrida em riqueza de detalhes. Para eles, o treino é quase uma religião, no sentido de que, pelo treino, eles se ligam novamente a algo superior. Então, ali não é lugar de brincadeira. Conversar e correr ao mesmo tempo? Nem pensar. Escutar música e correr? Às vezes. Correr e pensar no próximo treino enquanto corre? Sempre. 

Eles são diferentes. Nem melhores, nem piores: diferentes. O corpo deles é feito de musculatura. A comida é completada com os suplementos mais variados, modernos e tecnológicos. Eles conhecem as principais provas com profundidade e sabem diferenciar um treinador de outro pelo estilo de planilha. Tênis, eles conhecem todos, suas diferenças e quais se ajustam mais aos seus pés. 

Quanto ao tempo: eles fazem cálculos, sabem que no minuto X têm que estar no km Y e, se isso não acontecer, vão ter que optar por outra estratégia. Pular treino até podem em casos de chuva intensa, frio indecente ou algum compromisso que não pode ser transferido. E, nas raras vezes em que isso acontece, o demônio da culpa os domina e eles não sossegam enquanto não colocam a planilha em dia. 

Posso estar exagerando? Posso estar exagerando. Mas é como eu vejo corredores e corredoras bitolados em baixar tempo. É bonito de ver, mas é difícil de copiar. 

Porque, ó, é praticamente como ter uma vida dedicada à corrida sem ser corredor profissional. O que quer dizer que, além do tênis, dos suplementos, do relógio e dos treinos, a pessoa ainda tem que trabalhar, cuidar de filho, deixar o IPVA em dia, manter os 32 dentes na boca e, se possível, jantar fora uma vez por semana para não enlouquecer. Meus queridos e minhas amadas, vocês estão de parabéns.

Os avoados

Que graça de gente! Os avoados correm olhando a copa das árvores, conversam enquanto treinam, dão bom-dia para morador de rua. Numa prova de 21 km, que tem lá suas dificuldades, vão em duplas ou trios que é para um dar suporte ao outro. O que você aprende com eles? Que distrair a cabeça numa prova longa é tão importante quanto treinar meses a fio.

Porque, tirando algum fator extra como lesão, piriri ou cansaço físico, a cabeça tem um papel muito importante para um corredor. É ela, junto com os treinos, que vai determinar se você vai mais um quilômetro ou se para por ali. A cabeça tem o poder de te animar numa prova. Agora, se ela te diz: “Hoje não dá”, você está lascado. Suas pernas terão que fazer o dobro de esforço para que você siga até o final do seu destino. Se é que elas irão obedecer a uma vontade que você está tirando da alma.

É por isso que os avoados têm o seu valor. São eles que dão leveza às provas — principalmente se ficarem à direita, não atrapalhando os que ali estão para tempo e querem voar pela esquerda. E trazem uma alegria contagiante também. 

Normalmente, os avoados são os mais animados nas corridas. São eles que gritam, param para tirar fotografia nas placas que informam a quilometragem, têm ânimo para combinar meia com manguito e óculos com viseira.

Há quem ache que eles não corram nada. Eu não faço parte desse grupo, até porque, para mim, sujeito correu um pouco mais forte do que uma caminhada já está valendo. 

Não pense você que um corredor avoado não treine ou esteja completamente fora do peso. Eles fazem tudo o que qualquer outro corredor faz. Com a diferença de que fazem sem muito foco na corrida. Algum problema nisso? Para eles, nenhum. Para todos os outros, menos ainda. E sigamos, pois, para o quilômetro seguinte.

Os que chegam por último

Eu a vi de longe. Era a última colocada. Estava fazendo 21 km num esforço descomunal, passos curtos e lentos. Ela passou pelo meu posto de açúcar no km 12. Fui atrás dela, abracei a danada e perguntei se estava tudo bem. Ao que ela me respondeu:

— Isso é bom!

Até me perguntei se ela tinha entendido minha pergunta. Mas entendeu, sim. Porque correr é bom demais, mesmo para quem fica entre os últimos. A corrida te liberta e te desperta para um outro mundo. Um mundo onde o que vale é correr. O sedentarismo vira 1 km, que se transforma em 5, que logo passam a ser 10; se estamos no 15, por que não 18?, aí já vem a meia e, com mais treino, temos o sonho de muitos, os 42,195 km. 

Tenho para mim que chegar em último lugar é tão dolorido quanto chegar em primeiro. Tanto que, na Maratona de Nova York, o derradeiro recebe os mesmos parabéns e aplausos dos organizadores que o vencedor. E olha que a distância entre um e outro chega a ser de dez horas!

Muito mais fácil seria achar que perder não vale a pena e que seria melhor abortar os planos. O que é uma tremenda bobagem. Porque para estar ali, a pessoa deu o pior dos passos, que é o primeiro. A decisão de acordar cedo ou abrir mão da família à noite, ou ainda virar piada entre amigos que não correm é o trecho mais difícil dos treinos. O que mais dói é o primeiro passo, não o do meio e muito menos o último.

Então, se o corredor já chegou até ali, ainda que não estando no pódio, significa que ele venceu o sofá, deu um olé na cama e uma banana para quem tirou sarro da cara dele.

É, portanto, um vencedor. Para os últimos, então, o prêmio é dobrado, porque além de tudo isso eles ainda engoliram a seco a própria vaidade pelo simples fato de poder dizer “Eu venci”. Isso não é uma vitória normal. É uma vitória para o corpo, para a cabeça e, de quebra, para a alma, que sai da prova com ganas para fazer outra. E mais outra. E outra ainda. 

Eu queria muito que você tivesse visto a cara dessa moça que chegou em último lugar. Ela sorria, juro. Estava cansada, um pouco ofegante, mas a pele brilhava. Da próxima vez que você souber de uma prova, vá assistir e, se puder, fique até o último passar — ele normalmente vem seguido por uma ambulância e alguns motoqueiros da polícia. Ofereça seu abraço e você vai receber muito mais, e ainda vai se perguntar: “Por que eu também não estou correndo?”. 

Anne Dias

Jornalista com especialização em economia e com nove meia maratonas no currículo: duas W21, Meia Maratona das Pontes (Brasília), Disney, Corpore, São Paulo, Uberlândia, Porto Alegre e duas Golden 4 Asics. Concluiu também duas maratonas: Nova York e Buenos Aires. E não pretende parar.

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Anne Dias

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