Na primeira metade do século 20, os recordes já existem e são quebrados, mas ainda são raros os corredores que se dedicam com planejamento e obsessão a superá-los. Além disso, boa parte dos melhores corredores do planeta está ocupada demais lutando nos fronts de batalha ou sobrevivendo em países assolados por duas guerras mundiais e crises econômicas devastadoras, como o crash da bolsa de Nova York, em 1929. O panorama muda no início dos anos 1950. A paz e a liberdade do pós-guerra iniciam uma nova era, motivando os espíritos mais desbravadores. Façanhas como a conquista do Monte Everest, em 1953, pelo neozelandês Edmund Hillary (junto do sherpa Tenzing Norgay), eletrificam a Inglaterra. É nesse clima que o mundo das corridas começa a especular se algum super-herói poderá romper uma barreira considerada por muitos impossível: quebrar o recorde mundial, 4min1s4, de uma prova mítica e sagrada para o atletismo em língua inglesa, a milha* (cerca de 1.609 metros).
Roger Bannister, um menino inglês que durante a Segunda Guerra dispara cada vez mais rápido ao escutar os alarmes de bombardeio aéreo dos alemães, será um dos jovens caçadores vorazes da milha de 4 minutos. Nascido em 23/03/1929 em Harrow, subúrbio de Londres, ele seria evacuado com a família para Bath durante a guerra e descobre em um raro passeio na praia que correr não é apenas o medo e instinto de fugir dos aviões alemães: “Eu me lembro vividamente de um momento da infância, quando parei descalço na areia firme e seca junto ao mar. O som das ondas quebrando na costa esconderam todos os outros sons. Olhei alto para as nuvens, que pareciam galeões de velas brancas procurando orgulhosamente a terra firme. Olhei para as ondulações regulares marcadas pela água na areia e não consegui absorver tamanha beleza… Nesse momento supremo, pulei de alegria e comecei a correr. Fiquei surpreso e assustado com a tremenda excitação que tão poucos passos poderiam criar. “Olhei em volta apreensivo para ver se alguém estava assistindo. Dei mais algumas passadas — autoconsciente agora e firmemente segurando a excitação original. Estava correndo agora e um ritmo refrescante entrou no meu corpo. Eu não estava mais consciente do meu movimento. Descobri uma nova unidade com a natureza. Eu encontrara uma nova fonte de poder — uma fonte que nunca sonhei existir” (The First Four Minutes, primeiro livro de Bannister).
De volta a Londres com o fim da guerra, Roger Bannister se torna o melhor corredor de cross country de sua escola. A paixão pelas passadas só rivaliza com a admiração por seus heróis da saúde, Louis Pasteur e Marie Curie. Dedicadíssimo aos estudos, com apenas 16 anos, em 1946, ele passa nos exames para medicina. No ano seguinte ganha uma bolsa na Universidade de Oxford e inicia os estudos clínicos no Hospital Saint Mary, em Londres. Quanto à corrida, ele calça seu primeiro tênis com pregos para correr na pista da universidade, então um monstro de 586 jardas, cerca de 535 metros. Em pouco tempo Bannister vira líder das atividades atléticas de Oxford e é um dos responsáveis pela redução e reforma da pista, em 1950, para um quarto de milha, cerca de 400 metros.
Iffley Road, nome da pista de carvão de Oxford, se tornaria o templo onde Roger Bannister construiria seu evangelho de ritmo, velocidade, estratégia e uma qualidade decisiva, encontrada nos atletas mais valentes: o abandono, a garra de atacar no máximo ou além das próprias forças, geralmente com sprints no final das provas.
“Francamente, eu acredito que a milha de 4 minutos está além da minha capacidade. Dois segundos podem não parecer muito, mas para mim é como tentar atravessar um muro de cimento.” (Palavras do australiano John Landy, após cravar em torno de 4min02s em quatro provas seguidas no início de 1954.)
Os primeiros anos da década de 1950 tornam Bannister o melhor corredor da milha e dos 1.500 metros da Inglaterra. Sua figura alta e estilo elegante, de passadas longas e poderosas, o transformam no favorito para o ouro nos 1.500 metros da Olimpíada de Helsinque de 1952. A combinação do pouco tempo de treinamento diário (35 minutos durante a pausa dos almoços) devido ao seu trabalho no Hospital Saint Mary e a decisão dos organizadores dos Jogos de adicionar um dia ao programa da prova — um dia de eliminatórias, outro das semifinais e mais um para a final, e isso em três dias seguidos — acaba com suas forças e o inglês termina em um decepcionante quarto lugar.
O fracasso acende em Bannister o desejo de provar seu valor nos próximos dois anos, que culminariam com o campeonato europeu e os Jogos da Comunidade Britânica. Talvez mais que isso, o menino que corria das sirenes da guerra sabe que há outra forma de entrar para a história: bater o recorde dos recordes.
O ano de 1954 mais parece uma frenética temporada de caça pela milha dos 4 minutos. Roger baixa o recorde britânico para 4min3s6, mas nos EUA Wes Santee crava 4min2s4 e, na Austrália, John Landy faz quatro provas na casa dos 4min2s. Nenhum deles chega perto, porém, da milha de 4 min ou ameaça seriamente o recorde mundial do sueco Gunder Hägg, 4min1s4, estabelecido no então já distante 1945.
Quando John Landy anuncia que passará o início do seu treinamento de verão na Finlândia de ótimas pistas e rivais de alto nível, Bannister percebe que precisa agir rápido. Ele aproveita o ambiente médico em que vive, mergulha nos estudos de fisiologia da corrida, mede seu nível de consumo de oxigênio e descobre que correr voltas consistentes demanda menos oxigênio que variar o ritmo. Por isso passa a focar seu treinamento, na hora do almoço, em tiros de 400 metros, em geral dez, pontuados por pausas de 2 minutos. O formato faz com que ele baixe esses intervalos de 63 para 59 segundos.
6 de maio de 1954. O dia em que Roger Bannister lutará pela milha dos 4 minutos, num meeting entre Oxford e a Amateur Athletic Association, que ele defende, é castigado por uma chuva pesada e muito vento. De manhã ele trabalha no Saint Mary, em Londres, almoça um sanduíche e afia os cravos de sua sapatilha na pedra de mármore do laboratório do hospital, o mesmo lugar em que Alexander Fleming descobrira a penicilina 26 anos antes. Depois caminha até a estação de Paddington e toma um trem para Oxford, cerca de 100 km ao norte.
O corredor e médico chega no meio da tarde à sua conhecida pista de Iffley Road, na Universidade de Oxford, onde quase 2 mil pessoas tomam a arquibancada. A chuva persiste, até que minutos antes da largada da milha as nuvens se abrem e sai até um arco-íris. Pouco antes da corrida, o vento cessa e o sonho-plano de Roger Bannister vai começar. Plano porque ele terá a ajuda, para marcar e puxar seu ritmo, de dois amigos e corredores notáveis, Chris Chataway, que bateria o recorde mundial dos 5.000 metros meses depois, e Chris Brasher, futuro campeão olímpico, em 1956, dos 5.000 metros steeplechase.
O tiro de largada é dado às 18h britânicas. Brasher lidera por duas voltas, Chataway na seguinte e um pouquinho mais. Bannister, sempre nas costas do líder, precisa fazer a volta final em 59 segundos. Ele acelera tudo que pode, dispara na ponta, quase desmaia ao vencer a linha de chegada e ainda em transe consegue ouvir outro amigo, o estatístico e locutor da prova, Norris McWhirter, narrar em tom dramático e pausado a um público que mal conseguia respirar:
“Senhoras e senhores, aqui está o resultado do evento número 9. Em primeiro, o número 41, R. G. Bannister, da Amateur Athletic Association e ex-atleta do Exeter e Merton Colleges, Oxford, com um tempo que é um novo recorde do meeting e da pista, e que, sujeito a retificação, será o novo recorde inglês, britânico, europeu, do império britânico e… mundial. O tempo foi 3 minutos…”.
O clamor estupendo do público diante da marca inacreditável fez poucos escutarem os 59,4 segundos que completaram o tempo exato da quebra do muro dos 4 minutos. Quarenta e seis dias depois, John Landy reduz ainda mais o recorde outrora impossível para 3min58s, mas a glória pioneira ninguém jamais tiraria de Roger Bannister. Poucos meses depois, em agosto, Bannister e Landy encontram-se naquela que foi considerada pela mídia especializada da época “A Milha do Século”. O tira-teima ocorre na final dos Jogos do Império Britânico, em Vancouver, Canadá. Trinta e cinco mil pessoas veem Landy dominar quase toda a prova até que na curva final Bannister arranca com sua coragem e abandono típicos e vence o duelo, 3min58s8 contra 3min59s6 de Landy.
Ainda em 1954, Roger Bannister torna-se campeão europeu dos 1.500 metros em Berna, Suíça, e, para surpresa de todos, abandona o atletismo com apenas 25 anos para se dedicar à medicina. O mundo das pistas perdia um fantástico corredor, mas ganhava um brilhante médico neurologista, pesquisador e professor de neurociências. E, fato raro em um mundo em que campeões são facilmente superados, ele jamais foi esquecido em seu país, e de tempos em tempos reaparecia, sendo reverenciado por sua breve mas inesquecível carreira nas pistas. E ressurgia, como ao carregar a tocha olímpica dos Jogos de Londres, em 2012, naquela mágica pista de Iffley Road, com o mesmo modo de sempre, um cavalheiro elegante e campeão discreto e humilde.
Nem a dor de nunca mais poder correr por prazer, consequência de um acidente de carro que esmagou seu tornozelo em 1975, aos 45 anos, quebrou seu espírito de campeão e amor ao esporte. Permaneceu envolvido, notadamente na luta contra o doping, e foi o primeiro a desenvolver, nos anos de 1970, um teste para detectar os esteroides anabólicos. A partir de 2011, mesmo acometido pelo mal de Parkinson, ele seguiu envolvido com a medicina, com Oxford e o esporte, porque além das suas passadas belas e lendárias, o que sempre moveu Roger Bannister foi aquela coragem e força mental do homem que quebrou o muro impossível da milha dos 4 minutos.
O coração valente só parou de bater no último 3 de março, aos 88 anos. Partiu em paz, cercado da família, em casa na sua Oxford amada. Na mesma Oxford em que ensinou ao mundo que não havia limites para os sonhadores mais dedicados e sem medo. “O recorde da milha não era apenas visto (na época de Bannister) como uma barreira fisiológica, física e mental, mas rendia seguidas ameaças nos jornais médicos, que basicamente diziam que qualquer um que tentasse correr a milha em 4 minutos podia perder a vida ao tentar” (Sebastian Coe, bicampeão olímpico dos 1.500 metros e outra lenda inglesa das corridas).
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