Incluir o esporte na rotina de uma pessoa pode, além de oferecer inúmeros benefícios à saúde, combater graves doenças, como depressão, esclerose múltipla e câncer. Por mais simples que o ato pareça, levar uma perna à frente da outra repetidamente possui efeitos no corpo e no cérebro.
Embora seja incapaz de substituir a ajuda médica, a corrida é a ponte para uma série de reações hormonais e neuronais que acontecem no organismo, afirma Najara Karina Pereira Almeida, mestre em psicologia experimental pela PUC-SP.
“Para que a atividade física desperte efeito no tratamento de uma doença, é preciso que o exercício seja planejado, estruturado e repetitivo. Se for dessa forma, vai haver o efeito neurogênico, capaz de remodelar sinapses e modificar propriedades neuronais”, diz ela.
Dentre todas as modalidades esportivas, pouquíssimas são tão planejadas, estruturadas e repetitivas quanto a corrida, como indicam as planilhas e a cadência de cada treino ou prova.
Por isso, acumulam-se histórias de pessoas que, muitas vezes involuntariamente, começaram a se recuperar de doenças e enfermidades físicas e mentais quando colocaram na corrida a rotina.
Christiane Prado, de 39 anos, era sedentária até receber o diagnóstico de uma esclerose múltipla. Hoje, com a doença controlada e muitas experiências esportivas na bagagem, é médica do exercício e do esporte e ajuda a amenizar o sofrimento de pacientes que vivem o mesmo problema.
Aos 26 anos, ela começou a ter dificuldades para andar e perda de força no corpo. Depois, surgiram a perda de visão nos dois olhos e a diminuição da sensibilidade e da coordenação motora. Eram sintomas claros de que, dali em diante, Christiane teria de conviver com a esclerose múltipla, doença em que o sistema imunológico destrói a cobertura protetora dos nervos.
A doença atingiu seu estágio mais grave dois anos após o diagnóstico inicial. Com múltiplas lesões cerebrais e na medula
Sem saber se poderia andar por muito tempo e desanimada com a falta de efeito das medicações, Christiane resolveu aproveitar o tempo que achou que lhe restava.
No pior momento de sua doença, ela começou correndo 2 km em um batalhão do Exército no Rio de Janeiro.
“Meu início esteve ligado a um raciocínio bastante pragmático: ‘Poxa, não sei se daqui a pouco volto a andar. Já que daqui a pouco eu estarei na cadeira de rodas, vou aproveitar o tempo que me resta’. Nessa época, eu via um heroísmo nas pessoas que corriam”, recorda.
Christiane pegou gosto pelo esporte e viu a esclerose múltipla regredir. A involução da doença em seu corpo virou objeto de um estudo que ela mesma conduziu ao lado da professora Andrea Eslandes, da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
O estudo aponta que, ao fim do primeiro ano de treinamento intenso de corrida, seu grau na Escala Expandida do Estado de Incapacidade de Kurtze, método que quantifica as incapacidades ligadas à doença, caiu de 5.5 para 1.5.
Após dois anos e meio de treinamento, a medicação foi interrompida. Nos anos seguintes, mesmo sem a medicação, ela se viu livre dos sintomas e manteve o treinamento de alta intensidade.
A conclusão da pesquisa é de que há a “possibilidade de haver um papel imunomodulador e neurogênico que nos permite pensar em exercícios de alta intensidade como possíveis fatores para controlar a esclerose múltipla”.
“Quem tem esclerose múltipla está muito associado à fragilidade, assim como acontece em outras doenças. Depois de me interessar pela corrida, fiz muitíssimas provas de 5 km e 10 km. A prova que me deixou mais feliz foi a São Silvestre. Foi lá que provei para mim mesma que era capaz”, lembra.
Antes anestesista, Christiane trocou de especialidade após ver os benefícios da corrida como cura, tanto para a doença como para sua vida. Abraçou a carreira na medicina do esporte e hoje é uma das referências no tratamento de esclerose múltipla no Brasil.
“Alguns anos atrás, recomendar a corrida como cura de um quadro de esclerose múltipla era quase como falar que você queria matar o paciente. Hoje em dia é diferente. Além de trazer o prazer, o exercício físico desgastante consegue modificar o que o cérebro produz de substância, inclusive mudando seu funcionamento.”
Já Cléber Clímaco quase teve a perna amputada em 2001, após um grave acidente de moto e uma infecção hospitalar em seu atendimento. Hoje, com uma haste de titânio na mesma perna que quase foi amputada, é um homem de ferro. Em todos os sentidos.
No início de outubro, ele suportou fortes dores na perna e concluiu sua sexta edição de Ironman, em Barcelona, em 11h43min. Apaixonado por corrida e triathlon, ele convive com a artrose e o incômodo na perna há mais de 15 anos.
Entre todos os participantes do Ironman na Catalunha, poucos poderiam encarnar tão bem a alcunha de homem de ferro quanto este policial militar.
Em 2001, um acidente de motocicleta provocou três fraturas em sua perna. Com a tíbia e a fíbula partidas, viu seu quadro ser agravado por uma infecção hospitalar. Cléber ouviu dos médicos que a amputação da perna era uma possibilidade real. Voltar a andar já seria uma vitória.
“Chorei por uma noite e falei: ‘Não, isso não vai acontecer’. Recorri à fé e às pesquisas”, lembra.
A amputação não aconteceu, mas a haste de titânio que leva em sua perna é uma herança do acidente sofrido no início da década passada.
Indo contra as expectativas, teve alta após 30 dias de internação e voltou a apoiar o pé no chão depois de cinco meses. Para surpresa do médico, espantado com sua recuperação rápida, foi liberado para as atividades físicas após um período caminhando apenas de muletas e bengalas.
Cléber, que já era acostumado a correr maratonas antes do acidente, viu seu interesse pela corrida aumentar após o trauma. Do leito do hospital, percebeu a falta que o esporte fazia em sua vida.
Procurou médicos e fisioterapeutas, e buscou entender o que precisava fazer para se recuperar e quais eram os efeitos da corrida como cura para seu problema.
Dali em diante, suportando dores e movido por desafios, ele decidiu ir em busca de desafios cada vez maiores na corrida e no triathlon.
“Não vou deixar que as dificuldades me façam parar. Pelo contrário. É um processo contínuo de construção e desconstrução. Você tem que se desconstruir para voltar melhor”, observa.
A fisioterapeuta Roberta Perez, 29, arriscou as primeiras passadas durante a quimioterapia contra um câncer de mama. Vivendo o ápice de sua carreira na área hospitalar, aos 27 anos, ela recebeu a confirmação de que o nódulo em seu peito era maligno.
A quimioterapia, iniciada alguns dias depois do diagnóstico, castigou Roberta em todos os aspectos — física e mentalmente. Enjoos, dores físicas e cansaço passaram a acompanhá-la diariamente.
Diante de tanta fraqueza, Roberta decidiu sair da cama em que passava os seus dias, colocou um lenço na cabeça e, ao lado do marido, foi a um parque de São Paulo com o intuito de espairecer.
Foi ali que Roberta percebeu que era mais forte do que imaginava. Em meio às sessões de quimioterapia, correu 2,2 km de forma ininterrupta, com as lágrimas se misturando ao suor.
“Relatei o que havia passado no parque para a minha oncologista, que disse: ‘Isso é maravilhoso. Se você se sente bem, faça’. Vi que não estava morta, que ia sobreviver. Eu era a careca que corria chorando no parque. No pior momento da minha vida, eu me senti viva”, conta.
O tratamento durou cinco meses, e Roberta finalizou as sessões de quimioterapia a poucos dias da virada de ano, quando já estava correndo 8 km.
Após a inserção das próteses de silicone nas duas mamas, veio um novo baque. As dificuldades na cicatrização a obrigaram a interromper os treinos de corrida.
Mesmo sem treinar como gostaria, concluiu uma tradicional prova de 10 km em Santos, no litoral paulista, em 1h06min. Quando imaginou que seu sofrimento havia chegado ao fim, surgiu mais um duro golpe. Foi descoberto um tumor em seu ovário.
A hormonioterapia a colocaria na menopausa por um período de cinco a dez anos. A saída foi retirar o ovário. O acúmulo de problemas resultou em uma depressão.
“Isso tudo mexeu muito com a minha parte psicológica. Mexe com coisas muito femininas, mudanças que, às vezes, nós sequer notamos nos nossos corpos”, explica. Quando teve condições físicas de voltar a correr, o esporte foi uma arma poderosa contra a depressão.
Competitiva, ela já tem a marca de 1h16min em uma prova de 15 km e planeja aumentar as distâncias. Como resultado de tudo que viveu entre 2016 e 2018, decidiu mudar de vida. Hoje, aos 29 anos e com o exercício físico consolidado como parte de sua rotina, ela ganha a vida como professora de yoga.
Um estudo publicado no Journal of the American Medical Association em 2005 recrutou 2.987 mulheres operadas de câncer de mama para checar se a prática de exercícios físicos após o diagnóstico do tumor aumentaria os índices de cura.
Depois da mastectomia e das etapas de radioterapia e quimioterapia, as pacientes que caminhavam por pelo menos 30 minutos, cerca de cinco vezes por semana, em uma velocidade que girava entre 5 e 6 km por hora, tiveram 60% de redução do risco de reaparecimento da doença, menor mortalidade por câncer de mama e menor probabilidade de morrer em decorrência de outros problemas.
Na Austrália, quem não se exercita enquanto se recupera de um tumor maligno é repreendido pelos médicos. Vinte e cinco especialistas da Sociedade de Oncologia Clínica da Austrália defendem a tese de que não prescrever exercícios físicos para os pacientes é até mesmo prejudicial.
Para os oncologistas australianos, quem encara um tumor deve se submeter a 150 minutos semanais de exercícios aeróbios. Se o paciente optar por um exercício mais intenso, a duração cai para 75 minutos.
“A quimioterapia deixa o paciente debilitado por conta do grau de toxicidade, com fadiga e cansaço. O paciente com um preparo físico melhor ou alimentação mais balanceada, uma vida saudável, costuma aceitar melhor o tratamento. Há um tempo mais curto para a ação dos efeitos colaterais. O organismo tem uma resistência maior e o tratamento costuma ser tolerado”, confirma Rudinei Marques Linck, oncologista do Hospital Sírio-Libanês.
Visão negativa sobre o cotidiano. Perda de energia para tarefas simples. Sentimento de desamparo. Comportamento mais emotivo que o habitual. Esses são alguns dos sintomas da depressão, o mal do século XXI. No Brasil, cerca e 12 milhões de pessoas convivem com a doença, de acordo com dados da Organização Mundial da Saúde.
A corrida costuma ser recomendada como parte do tratamento contra depressão por liberar uma série de substâncias no cérebro, além de estimular o convívio social e a busca por objetivos. Apesar dos benefícios, no meio da corrida, o assunto ainda é tratado como tabu.
“Tem muita gente que ainda não enxerga a depressão como uma doença. Para algumas pessoas, é constrangedor admitir o problema. Para outras, é libertador. O que eu noto é que algumas delas, quando incluem a corrida em suas rotinas até reduzem a quantidade de medicamento”, relata Darlan Duarte, treinador da Pacefit.
Conhece aquela sensação de prazer e bem-estar após um treino? A endorfina é uma das responsáveis por isso. É um hormônio que aumenta a disposição física e mental, além de ter efeito analgésico e imunológico.
Uma das principais substâncias responsáveis pelo controle da ansiedade. É um neurotransmissor que age como um tranquilizante natural, ajudando no foco, na concentração e diminuindo a ansiedade. Baixos níveis podem levar à apatia, insônia, perda de libido, dentre outros sintomas desencadeadores da depressão.
Promove sensação de euforia, bem-estar e plenitude. Contribui sensivelmente para o combate à insônia, um dos sintomas da depressão.
Promove uma sensação de euforia e força em nosso corpo. Isso cria um cenário de maior energia e disposição durante a atividade.
*Por Pedro Lopes e Natália Almeida
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