Daniel conheceu as drogas quando tinha 13 anos. Fumou maconha, cheirou cola e tíner, mergulhou nas substâncias sintéticas na fase em que frequentava festas de música eletrônica e se afundou no crack. Cleber usou todas as drogas que conheceu na vida. Giovani dos Santos também era dependente, mas do álcool. Em comum entre eles, a forma de combater o vício. Trocaram tragadas e goles pelas passadas da corrida.
“A minha história não é muito alegre, mas tem um final feliz. Comecei a correr dentro da clínica de reabilitação”, conta o empresário Carlos Daniel Novoa dos Anjos. Ele se internou voluntariamente no ano de 2012 para combater o vício. À época, dava voltas no campo de futebol da clínica para ocupar o tempo livre. Começou a perceber que ao fim das corridas tinha uma sensação de prazer que, nos anos anteriores, só sentia quando tinha uma pedra de crack à disposição.
Dono de uma tapeçaria, ele usava todo o dinheiro que entrava na empresa – atrasava salários de funcionários e pagamentos a fornecedores – e vendia objetos pessoais para comprar a droga. Só parava quando o dinheiro acabava, não conseguia mais comprar fiado ou a garganta doía demais pela quantidade de fumaça inalada por horas.
O início na corrida veio justamente num dos momentos em que seu corpo começaria a sentir mais falta da droga, por volta do terceiro mês de tratamento. As constantes voltas no campo de futebol ajudavam a liberar endorfina e serotonina no corpo de Daniel, que estava acostumado a descargas de dopamina com o uso da droga. A corrida ajudou a diminuir o impacto da abstinência.
“Quando a pessoa faz exercício, produz endorfina. Essa substância dá um prazer mais demorado e com pico menos intenso do que o da droga, que quando acaba a pessoa fica deprimida”, explica o psiquiatra Arthur Guerra, coordenador do Programa Interdisciplinar de Estudos de Álcool e Drogas do Hospital das Clínicas (Grea) e presidente-executivo do Centro de Informações sobre Saúde e Álcool (Cisa).
O médico paulista fala sobre os efeitos do exercício no corpo com propriedade – já fez 13 maratonas e cinco edições do Ironman – e usa a atividade física como ferramenta no tratamento de dependentes. Em sua clínica, são nove personal trainers trabalhando para desenvolver nos pacientes a consciência sobre a importância e os benefícios da vida ativa.
Há quatro anos longe das drogas, Daniel Novoa Anjos ainda usa a corrida quando percebe que precisa relaxar depois de um dia difícil de trabalho na tapeçaria, agora com pagamentos dos funcionários e as contas em dia. “Quando estou meio assim, minha mulher fala: ‘Pelo amor de Deus, vai correr’”, diverte-se o empresário, referindo-se à sua segunda esposa. A primeira o deixou por causa do vício.
“TODAS AS DROGAS QUE APARECERAM NA FRENTE”
O veterinário paulista Cleber Isbin descobriu quase por acidente que conseguia atingir com o esporte graus de satisfação muito maiores que os de quando usava drogas. Em uma de suas tentativas de largar a dependência, ouviu da psicóloga que deveria inserir o exercício na sua rotina diária. Começou a fazer musculação todos os dias da semana, mas gostava mais dos 15 minutos de aquecimento na esteira do que do restante do tempo na academia treinando fortalecimento.
Até que resolveu se inscrever em uma prova de 5 km em Ribeirão Preto, cidade vizinha a Jardinópolis, onde vive. Ele estava acostumado a correr cerca de 3 km na esteira como aquecimento para a musculação e resolveu encarar o desafio depois de dois meses de tratamento para se livrar da dependência.
“De repente eu estava em um lugar às 6h da manhã, em volta de mais de mil pessoas que não estavam usando drogas. Isso era um fato raro para mim. Na hora pensei que aqueles, sim, eram os loucos, e não os caras com quem eu andava antes. Todo mundo ali tinha acordado cedo para correr”, recorda.
Depois de 5 km de prova, Cleber compreendeu por que as pessoas ao seu redor estavam tão felizes. O veterinário, que usou “todas as drogas que apareceram na frente” na vida, sentiu prazer por ter concluído a corrida. As passadas naquele dia tiveram ainda mais significado para ele porque as manhãs de domingo, quando a prova ocorreu, geralmente eram de depressão e pensamentos suicidas depois de horas usando drogas. “O esporte ajuda o paciente a ter novos amigos. Você vê que as pessoas se divertem de outra forma, sem álcool e sem drogas”, explica o dr. Arthur Guerra.
O veterinário levou a corrida e suas lições para a vida. Treina todos os dias por prazer – e para melhorar seu já impressionante desempenho. Em 2015, correu a Maratona de Buenos Aires em 2h43min21s, obtendo o 40º lugar da classificação geral. No último ano, venceu a disputa de 67 km da Mizuno Uphill, uma das provas mais difíceis do Brasil.
A repercussão dos resultados fez Cleber transformar sua história em palestra, dada gratuitamente em instituições públicas para conscientizar jovens e crianças sobre os malefícios do uso de drogas.
DO ALCOOLISMO À CHAMPANHE DO PÓDIO
As histórias de Daniel e Cleber são parecidas com as de outros corredores, inclusive um ex-lavrador da cidade mineira de Natércia, que conta com aproximadamente 5 mil habitantes. Só que Giovani dos Santos era viciado em uma droga legalizada, o álcool, e levou a corrida muito além do tratamento da sua dependência alcoólica.
Giovani não começou a correr para controlar o alcoolismo, foi quase uma obrigação, mas a ajuda no tratamento da dependência veio quase que naturalmente. Servindo no Exército, percebeu que ia melhor do que os companheiros durante as atividades de preparação física, mesmo com o corpo sofrendo os efeitos do abuso de bebida.
Os bons resultados nas provas que disputava, algumas pelo Exército, deram-lhe força para, gradualmente, diminuir o volume de álcool e aumentar o de treino. A decisão de nunca mais beber veio em 2009, quando decidiu virar atleta profissional. Começou a treinar na equipe Pé de Vento sob orientação do dr. Henrique Vianna e em poucos meses tornou-se um dos principais fundistas do Brasil.
Conquistou a medalha de bronze dos 10.000 metros nos Jogos Pan-Americanos de Guadalajara 2011, venceu cinco edições da Volta da Pampulha e foi o melhor brasileiro da São Silvestre nas últimas cinco temporadas. “Tinha um amigo que servia comigo no quartel que falava que a bebida não compensava, que eu tinha potencial para a corrida e precisava aproveitar esse dom. Fui botando isso na cabeça até colocar um ponto-final nessa história”, explica o atleta mineiro, hoje exemplo para outras pessoas pela história de superação do vício.
Segundo ele, são raras as provas que disputa sem ser abordado por alguém revelando ter se inspirado em sua mudança de vida para abandonar algum vício. O gosto pela bebida tanto faz parte do passado da vida de Giovani que ele guarda bebida em casa, para oferecer aos amigos que o visitam, e vai a confraternizações em bares sem ficar com vontade de consumir álcool.
A troca da bebida pelas passadas também está na história de Iuri Ferreira, de 26 anos. Em 2015, ele dormiu ao volante na descida da serra de São Paulo para Santos pelo cansaço acumulado do trabalho e uma noite bebendo e sem dormir. Bateu em um veículo quebrado, parado na pista. “Parece até um milagre. Se ele não estivesse ali, eu teria caído na serra e morrido”, diz. O acidente fez o estudante de engenharia começar a repensar seu estilo de vida. Diminuiu drasticamente o consumo de álcool e entrou em um grupo de corrida. A vontade de melhorar constantemente os resultados o levou a reduzir também a participação na vida noturna.
A confirmação de que a mudança no estilo de vida era necessária veio com um acontecimento triste na vida de Iuri. Sua melhor amiga morreu no último ano ao ingerir acidentalmente lança-perfume durante uma festa. “O pessoal acha que bebida e balada não matam, mas são o que mais prejudica qualquer jovem sem juízo”, avalia o corredor.
CORRIDA PELA CIDADANIA
O esporte é uma das principais ferramentas da Arcah, instituição que trabalha na reintegração social de pessoas em situação de rua. Mensalmente, o grupo realiza ações em centros de acolhimento na cidade de São Paulo e aposta em exercícios físicos e atividades lúdicas para conquistar a confiança dos conviventes, muitos deles com uso abusivo de drogas, para começar a instituir uma política de redução de danos.
Essas ações são financiadas pela renda obtida com o projeto Run4Arcah, assessoria esportiva que promove aulas de corrida no Parque do Ibirapuera. E a modalidade deve ser ainda mais importante para a instituição a partir de agosto, quando será inaugurada a fazenda da Arcah, em Araçariguama, no interior de São Paulo. A primeira turma de conviventes deve ter 20 pessoas e aulas de educação física como parte da rotina.
“O nosso sonho é em dezembro fazer uma corrida de 5 km com todo mundo junto: essas 20 pessoas, os voluntários e o Run4Arcah. O grupo larga e termina junto. Imagine que depois da prova esse cara ganha uma medalha, tira foto… na cabeça dele fica o sentimento de que ele pode mudar”, afirma o diretor de operações Rodrigo Flaire.
No acompanhamento terapêutico regular realizado nos centros de acolhimento, a Arcah percebeu uma melhora na recepção a suas iniciativas sempre que uma ação esportiva passava a ser promovida. Por isso, a ONG criou um projeto de financiamento coletivo chamado Futebol da Rua a fim de arrecadar os fundos necessários para inserir a atividade física na rotina dos conviventes nos centros de acolhida de São Paulo.
“Dentro da abordagem da redução de danos, eu troco os prazeres. Tiro o da droga e coloco o prazer do esporte. E muitas vezes isso tem relação com a memória. A pessoa pode se lembrar do tempo de escola, de jogar futebol na rua, dos velhos amigos. Eu tiro a droga e trago essa alternativa”, diz o psicólogo da Arcah Lucas Marques.
A instituição usa esportes coletivos para fazer a reinserção dessas pessoas no exercício, mas acredita que é importante em algum momento fazer uma transição para uma modalidade individual. A corrida atende com perfeição a esse objetivo, como Daniel, Cleber, Giovani, Iuri e muitos outros podem provar.
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