Na arena das provas de 10 km, 21 km ou maratona – ou insanamente longas como uma ultra e o Ironman do triatlhon –, o momento impiedoso do clichê sempre chega. Quando a pressão de instantes decisivos ou as dores dominam partes vitais do corpo e mente do corredor, “a hora de a onça beber água” vai requisitar o que os boxeadores chamam de “olho do tigre”. Só que esse olhar, puro instinto nos felinos predadores, no ser humano exige também uma preparação mental forte e equilibrada. Mais do que o corpo preparado, uma cabeça pronta para o combate contra os próprios limites e a ansiedade e o medo em várias escalas.
Há algo decisivo para o olho de tigre funcionar nos momentos críticos de uma prova mais dura: a bagagem de treinamento e muita capacidade física e mental por parte do atleta. E aqui surge um problema vital, segundo Simone Sanchez, psicóloga das equipes B3 Atletismo (antigo Clube de Atletismo BM&FBovespa), em São Caetano do Sul; e Orcampi/Unimed, de Campinas.
“O nosso corpo é comandado pela nossa mente. Se o atleta priorizar somente a preparação física e não trabalhar a mental, ele poderá não conseguir colocar em prática o que o corpo dele está preparado para fazer. Poderá faltar confiança para agir corretamente em situações cruciais de uma prova – no momento de decidir se aumenta o ritmo ou fica numa toada mais conservadora; ou se segue com um grupo mais rápido ou fica com o grupo de trás”, fala a especialista.
A fragilidade aparecerá também “se ele não estiver motivado de forma que consiga enfrentar a dor do desgaste quando ela surgir, ou até mesmo a pressão de outros atletas e torcedores ao longo da prova”, comenta.
CABEÇA DE CAMPEÃO
O britânico de origem somali Mo Farah, mito do atletismo por ter repetido a vitória dupla nos 5 mil e 10 mil metros nos Jogos Olímpicos de Londres e do Rio, poucos anos antes da Olimpíada inglesa tinha a mesma capacidade física dos melhores fundistas do planeta – quase todos, quenianos ou etíopes –, mas lhe faltava o equilíbrio mental de seus adversários. Mo gosta de lembrar como sempre tremia, literalmente, antes da largada para provas importantes, mal conseguindo segurar um copo d’água. Foi só quando venceu os melhores do mundo em uma prova mítica, em Eugene, Oregon – na terra de uma lenda da coragem nas provas de fundo, o americano Steve Prefontaine –, que ele adquiriu confiança para dominar sua ansiedade e correr não contra os outros, mas apenas contra si mesmo.
O britânico identificou com perfeição o maior rival dos corredores de fundo: o inimigo interior. A besta que pode tanto nos impedir de levantar da cama para treinar em um dia frio ou chuvoso como nos paralisar ou forçar demais nas provas.
A chave identificada por Mo Farah é confirmada por um brasileiro típico, criado na coleta de lixo. Solonei Silva encontrou uma vida melhor nas corridas de rua, mas só se tornou um atleta mais completo quando cuidou também da cabeça.
“Antes de eu me formar em educação física acreditava que a preparação era o fator determinante para se dar bem em uma maratona. Depois que cursei a faculdade, tive a confirmação de que sem uma mente extremamente forte, o indivíduo não vai conseguir suportar as adversidades que os 42.195 metros do percurso impõem sobre a mente e, consequentemente, sobre os músculos e demais órgãos do corpo humano. Em minha opinião, é 60% preparação mental e 40% preparação física. Do contrário, nem a preparação (a carga de treinamento) você consegue superar”, diz o atleta.
A trajetória de vida duríssima de Solonei no interior paulista antes do atletismo também o ajudou a ter uma força mental maior. “Correr cerca de 40 km da rotina de coletor de lixo não é para qualquer um, tampouco correr carregando saco de lixo para ser jogado na caçamba do caminhão, ou sob um sol de 37°C que faz em Penápolis (SP) nos dias de verão, com uma roupa que mais parece uma lona de caminhão na famosa cor laranja! Tudo isso com toda certeza me fez mais forte a cada dia. E ainda havia os cachorros, vidro, chuva, fumaça do escapamento etc.”
AJUDA PROFISSIONAL
“O trabalho de preparação mental com um psicólogo auxilia o atleta, em primeiro lugar, a se conhecer melhor e saber identificar quais são os fatores a que ele tem de estar mais atento para não permitir que influenciem negativamente o seu desempenho”, afirma Simone Sanchez. Essa preparação mental determina também as estratégias mais eficazes para enfrentar essas situações negativas; estratégias que devem ser testadas primeiro nos treinos, depois em competições de menor importância, até chegar às mais relevantes.
“Tudo isso levará a um maior autoconhecimento do corredor, e a uma capacidade dele de lidar melhor com a ansiedade e se concentrar para tomar a melhor decisão quanto à respiração, dores que surgem, percepção de lesão anterior que se manifesta, ritmo etc.”, afirma a psicóloga esportiva.
A triatleta amadora santista Rosecler Costa, 39, a “iron mãe”, teve por um bom tempo o acompanhamento de um psicólogo do esporte. “São muitas coisas que passam por nossa cabeça. Muitas dúvidas, problemas, estresse, cobrança. No meu caso ainda, que tenho trabalho (é perueira escolar), dois filhos, marido e cuido da casa, às vezes a gente pira, dá curto-circuito e procuro um profissional para me ajudar.”
O personal trainer e treinador de corrida paulistano Renato Dutra, 44, acredita que um psicólogo é importante para descobrir, por exemplo, por que um corredor que treina bem, por vezes, vai mal nas provas de rua.
“Ele vai esmiuçar se dentro de você não tem um trauma, uma frustração. Muitos atletas de elite, por exemplo, só conseguem dar um salto na carreira após um trabalho psicológico, como o ginasta brasileiro Diego Hipólito, que fracassou como favorito em duas olimpíadas e só se recuperou depois de treinar sua mente, o que lhe ajudou a trazer a prata nos Jogos do Rio”, complementa Renato Dutra.
SOFRIMENTO SEM EXAGEROS
Pré-requisito de um corredor de provas longas é a capacidade de sofrer. “Tem que se adaptar aos imprevistos, mas tem corredor que é dodói, ‘ah, meu Garmin não funciona’, ‘ah, como vou administrar meu pace sem isso?’. Acontece também de o cara não aguentar nem um pequeno mal-estar, como uma dor de bariga. E isso não é só na prova. Tem gente que reclama da falta de tempo, mas é melhor treinar por menos tempo do que pular o treino. Tem que se adaptar”, afirma Dutra.
Atletas amadores muito bem treinados, como triatleta Rosecler Costa, revelam como enfrentar os piores momentos de uma prova. “Nessa hora, quem não vive financeiramente do esporte costuma se questionar: ‘O que estou fazendo aqui?’. Nosso cérebro nos trai a todo instante e nosso corpo adora um conforto, adora economizar energia. Por isso, na primeira oportunidade ele nos diz: ‘Pare! Descanse! Você não aguenta mais!’ E é justamente nessa hora que você tem que ser claro e determinado no seu objetivo: terminar aquela prova, cruzar aquela linha de chegada e gritar bem alto ‘Eu consegui!’”
Rosecler exemplifica isso com o Ironman de Fortaleza, em 2015. Apenas um mês depois de fazer o Iron de Kona (Havaí), ela nadou e pedalou bem no Ceará e liderava a prova, mas faltando 14 km para terminar, não aguentava mais de dor. “Encontrei meu marido e ele falou para eu pensar nas crianças, em coisas boas. Comecei então a mentalizar todos os treinos pelos quais passei, todo o dinheiro investido, todos os problemas que superei para chegar lá. E assim fui até cruzar a linha de chegada em primeiro lugar.”
O treinador Renato ressalta, porém, que quando acontece uma lesão, é outra história, precisa parar na hora. “Um aluno meu levou muito ao pé da letra o ‘suportar o sofrimento’. Momentos antes de uma maratona ele foi pular a cerquinha da prova e fraturou o pé. Estava com muita dor e mesmo assim correu a prova toda. Aí a coisa extrapola, pois a saúde vem em primeiro lugar”, ensina.
Renato aponta ainda o perigo de quem desconta os problemas na corrida. “Uma aluna me contou seus sérios problemas no trabalho e com a família enquanto ela treinava cada vez mais. Mostrei que ela precisava, naquele momento, tirar um pouco o pé e cuidar dos problemas, senão ia se lesionar por excesso de treinamento”, completa.
ARMADILHAS E DEFESAS MENTAIS
Além da dor, um dos maiores obstáculos dos corredores é a ansiedade. “Tem muito leão de treino, que treina muito bem quatro, cinco meses, mas chega a prova e ele amarela como uma criancinha. E às vezes o mais quietinho da equipe faz o melhor tempo da turma. Essa é a mentalidade de vencedor, de alguém com um nível de ansiedade de baixo para médio. É o corredor equilibrado, constante”, revela Renato Dutra.
Esse espírito vencedor ou equilíbrio percebido por Renato é identificado na psicologia como força de vontade ou ciência psicológica do autocontrole. É a capacidade de resistir às tentações, tanto o comer um doce como desistir de um treino ou clímax de uma prova. “Maximizar a performance de corrida exige pouco mais que anular o desejo do cérebro de diminuir o ritmo e manter a homeostase (equilíbrio do corpo)”, afirma Steven Magness, ex-corredor profissional, hoje treinador e mestre em fisiologia do exercício.
O administrador, advogado e ultramaratonista paranaense Marcello Lauer revela sua fórmula para o autocontrole: “Disciplina é a chave. Saber que a jornada é longa. Uma prova não começa com a largada, mas sim muito antes. Envolve toda a preparação, dia a dia, treino a treino, refeição a refeição. Tem dia que parece que não dá, mas mesmo nesses dias tem que dar, a disciplina te leva a fazer. Para isso é necessário ter equilíbrio, dominar a vontade de não fazer, dominar a vontade de parar e ir seguindo, passo a passo.”
Outra qualidade vital para domar os temores da mente é o modo como tomamos decisões sob pressão, segundo Martin Turner, psicólogo do esporte e professor da Universidade de Staffordshire, Inglaterra. “A resposta inicial ao estresse ocorre de forma inconsciente e automática, baseada em nossa avaliação inicial rápida de uma situação. Algumas pessoas são capazes de responder de uma maneira que ajuda na sua performance, é o ‘estado de desafio’. Outras, porém, entram em um ‘estado de ameaça’, o que atrapalha o seu desempenho. O medo de falhar, ou a preocupação de tomar uma má decisão pode nos fazer pensar demais em uma situação. É o que a professora e psicóloga americana Sian Beilock, autora do livro Choque, chama de “paralisia por análise”.
Pensar demais pode destruir a habilidade de um atleta desenvolver todo o seu potencial, segundo Martin Turner. Um dos grandes tenistas da história, Andre Agassi seguia esse conceito à risca: “Não olho nunca além do primeiro passo… Muitas vezes me decepcionei ao dar muita importância ao objetivo final”.
PRONTO PARA O COMBATE
Para entrar no “estado de desafio” ou combate, segundo o psicólogo Martin Turner, é preciso ter confiança, autocontrole e foco no sucesso. Nesse último quesito, ele sugere que o competidor converse de forma positiva consigo mesmo antes das competições, focando em mantras positivos.
O executivo de banco e maratonista amador paulistano Alexandre Bastos, 44, parece estar sempre no modo desafio graças a dois elementos que considera fundamentais: treinar sozinho e fazer treinos longos na esteira. “Esses dois elementos fazem do meu psicológico a minha maior arma. Sozinho, me encontro, organizo minhas ideias e fico concentrado em cada centímetro da minha estratégia. A esteira me coloca em um outro patamar de foco. Se em alguns treinos chego a correr 24 km na esteira, treinos de 36 km no parque nunca serão um tédio.”
Outra forma de prontidão para a sua batalha é sugerida pela psicóloga esportiva Simone Sanchez. “Trabalhamos muito com o controle de pensamentos. É importante o atleta ter a capacidade de identificar o que normalmente passa pela sua cabeça nos diversos momentos de uma competição, especialmente nos mais decisivos. Ele deve saber identificar quais os pensamentos que não irão lhe auxiliar e quais os que auxiliam mais na manutenção da concentração”, fala a especialista da B3 Atletismo.
Mais uma técnica importante, segundo o cientista do exercício Steven Magness, é a visualização. O corredor paulista Solonei Silva adota essa estratégia ao acionar, antes das provas, um flashback de todos os treinos, dedicações e abdicações que teve de fazer.
O treinador Renato Dutra, que estudou psicologia do esporte com o mestre João Cozac, costuma sugerir a visualização para seus atletas. “Falo para meus alunos que o ideal é que eles tenham um psicólogo para lhes dar suporte, mas informalmente sugiro que reservem toda semana entre 5 a 10 minutos para trabalhar a prova que irão disputar na cabeça. Antes de a corrida acontecer, ela precisa acontecer na sua mente. Então imagine-se largando com controle, forte; na metade da prova, imagine-se sentindo cansaço mas ainda conseguindo manter seu pace; e no estágio final, imagine-se sofrendo mas determinado e confiante.”
Steven Magness destaca também a importância da criação de uma rotina positiva e leve antes da prova. Nessa tática, ele cita o herói olímpico Mo Farah, que costuma ouvir música e dormir um pouco antes das suas batalhas. “Essa rotina o ajuda a ficar no controle do seu estado mental.”
CHEGANDO LÁ
Característica essencial nos vencedores de seus próprios medos e barreiras é descobrir que a força mental vem muito mais de dentro do que de uma fonte externa. A triatleta Rosecler disseca essa chama interior e ainda revela como as paixões, a fé e a sede de aprendizado em outras áreas a tornam mais forte e completa. “Inspiração é algo externo e motivação é algo que vem de dentro de você. Unir esses dois elementos é manter corpo e mente em equilíbrio. Procure fazer coisas de que gosta, que te façam feliz, o resto é consequência. Faço coisas que me ajudam nessa busca na religião, na música, no contato com algum profissional especializado. Vou em busca do meu crescimento interior. Isso, com certeza, faz diferença na hora da prova.”
O ultramaratonista Marcello Lauer prioriza mais alguns valores pessoais. “Respeito, humildade e vontade te levam longe. Transformam o medo em coragem, a fraqueza em força, a dúvida em certeza, a agonia em alívio. Seguir em frente, sempre, será a melhor escolha.”
Rosecler e Marcello trabalham a força psicológica de forma profunda. Entendem uma ressalva importante feita pelo coach mental francês François Ducasse e pelo psicólogo esportivo alemão Makis Chamalidis, autores do excepcional livro Cabeça de Campeão:
“De modo geral, as técnicas de condicionamento mental têm seus limites, e encorajam a simplificação, a ideia de uma prática mental prêt-à-porter. Os problemas são empurrados para baixo do tapete e podem reaparecer em outro lugar. Como os curativos, essas técnicas podem ajudá-lo, mas não vão curá-lo. Os atletas que esperam demais dos métodos e dependem demasiadamente das crenças externas (influências de gurus ou certos tipos de preparação mental, superstições, pensamento mágico) são muitas vezes frágeis.”
Ou seja, a dupla de psicólogos (com vasta experiência de trabalho com atletas de elite de sucesso em diversas modalidades) pondera bem o peso do “just do it” e outras técnicas. Ressaltam que um acompanhamento a longo prazo de um profissional da área é essencial.
Mas tudo bem, enquanto você não se transforma num campeão zen, inabalável, não custa nada um mantrazinho ou inspiração externa, né? E quem melhor que o boxeador que mais correu na história, e ainda conseguia – depois de longões intercalados com intervalados insanos – dar um tiro final camicase subindo as escadas intermináveis da prefeitura da Filadélfia, EUA? O eterno Rocky Balboa nos lembra – com simplicidade, verdade e, claro, olhos de tigre – uma máxima inquestionável: “Lutadores lutam”.
O mantra é simplório demais? Ora, a luta constante de Rocky – sem trégua e sem esmorecimento – e seu equilíbrio e encaixe quando está tomando uma saraivada de golpes sem entregar os pontos têm muito a ver com outra tese central dos especialistas em preparação psicológica, Ducasse e Chamalidis:
“Seja qual for a sua força de vontade, a força de seus dons, sua capacidade de concentração ou a intensidade de seus esforços, o competidor emotivo e febril demais perderá o controle. É o pior defeito de um guerreiro. Não basta ter força: é preciso controlá-la. E a essa força que assegura um equilíbrio psicológico notável durante a ação nós chamamos força emocional”.
Essa preparação mental faz o atleta que ultrapassa todas as barreiras – internas e externas – entrar em êxtase. Eis aí o sentido, beleza e magia do esporte: “No ponto culminante de um esforço tremendo e vitorioso, enquanto o sangue está martelando sua cabeça, de repente tudo fica quieto dentro de você. Tudo parece mais claro que antes, como se grandes holofotes tivessem sido ligados. Naquele momento, você tem a convicção de que todo o poder do mundo está contido em você, que você é capaz de tudo, que você tem asas” (Yuri Vlasov, russo ex-campeão mundial de levantamento de peso).
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