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A insatisfação está nos genes do Homo sapiens. Sempre queremos mais, desejamos o novo, teimamos em evoluir. Queremos ir mais longe. Isso vale se não para todos, para a imensa maioria dos corredores de rua. Quem começa a correr, por mais despretensiosamente que isso se dê (pode ser para perder peso, entrar em forma, recomendação médica, condicionar-se para outra atividade esportiva, não importa), tenta mostrar, pelo menos nos primeiros meses, a mais profunda humildade, até um certo desinteresse. “Estou começando, dando umas corridinhas, corro 3, 4 km, pra mim tá ótimo.” Mal sabe ele que assim que a endorfina começar a jorrar em suas veias, suas metas serão completamente diferentes.
Primeiro ele vestirá uma camiseta de prova pela primeira vez, normalmente 5 km, para “só acompanhar os amigos”. Gosta da brincadeira, começa a frequentar corridas nos fins de semana e, quando percebe, já está de olho naquela turma que corre 10 km. “Só 5 km passam muito rápido, esse pessoal que dá duas voltas se diverte muito mais.” Pronto, começou… A questão é cada corredor descobrir até onde quer ir. Que fique bem claro: não é a distância que determina a qualidade do corredor — e não há melhor prova disso que a justíssima reputação de Usain Bolt. Você pode se satisfazer nos 5 km e, também com toda a razão do mundo, considerar que a breve intensidade, infinita no tempo limitado em que durar, é a melhor das sensações.
Mas talvez exista algo que possa ser definido como o “chamado do asfalto” (que também pode ser entendido como “chamado da trilha”, se a opção em algum momento for a montanha). Um desejo mais forte, a vontade interior de correr mais tempo, por mais lugares, quase um comichão incontrolável de ir mais longe. O corredor que ouve este chamado incorpora em si o olhar do husky siberiano, cão puxador de trenós no Polo Norte que, segundo a lenda, corre sem parar simplesmente porque precisa chegar à linha do horizonte. Para esse sujeito, os 10 primeiros quilômetros também são épicos, mas logo vêm as provas de 10 milhas, depois a meia-maratona e, finalmente, a “rainha”, a “mãe de todas as corridas”: a maratona e seus longos, intimidantes e tentadores 42.195 metros.
Dividimos esta reportagem em três partes: os primeiros 10 km, a primeira meia e a primeira maratona, tentando descrever emoções intrínsecas da alma e do corredor e apresentando dicas de treinadores profissionais, aptos e acostumados a conduzir atletas a cada uma dessas distâncias com sucesso. Você não precisa ser um maratonista para sentir-se completo. Apenas ouça o chamado do asfalto. Ele te levará ao lugar certo.
Ah, a primeira prova de 10 km. A primeira lembrança é aquele mar de gente reunido ali para fazer algo que, você sabe, é absolutamente apaixonante. Mesmo que já tenha competido em uma prova com a metade da distância, a sensação de estrear nos 10 km te faz sentir-se parte de algo maior — no Brasil, os 10 km são, de longe, a competição favorita de rua.
Talvez porque seja uma distância que exija comprometimento relativo (em outras palavras, não é proibitiva para quem gosta de uma cervejinha no final da tarde ou para quem tem perdido a briga contra aqueles 5 kg tão bem acomodados em torno da cintura). Mas não se engane: 10 km são 10 km! É uma viagem que, de Uber, custa mais de R$ 20 (e não é no preço dinâmico!). Imagine correndo… “Mesmo não sendo tão longa, é uma distância que inspira cuidados”, explica a treinadora Natália Tolino, da assessoria Run&Fun. “Um deles é o fortalecimento muscular.”
Embora muitos novos corredores de rua nasçam nas academias, musculação é uma atividade que tende a ser preterida quando o atleta mergulha na mágica de correr. E isso pode ser um erro. “A corrida traz um ganho cardiorrespiratório muito rápido para quem começa a correr, porém força e potência são processos mais demorados, por isso a importância do trabalho muscular”, diz Natália.
E já que estamos falando de coisas não exatamente agradáveis para um corredor, nunca deixe de dar importância ao descanso. “É normal o iniciante se empolgar com a descoberta da corrida e não querer descansar”, lembra Tolino. “E isso pode ocasionar lesões.”
Se partirmos do princípio de que o treinamento básico de um corredor amador são três ou quatro sessões semanais de corrida (rodagem, intervalado, longo e um trote opcional), mais duas sessões de fortalecimento, é fundamental separar pelo menos um dia na semana (ou dois) de descanso absoluto, também conhecido como o “maldito off”. É, meu (minha) chapa, há males que vêm para o bem.
Como parte do processo natural de construção e evolução do corredor, é recomendável que antes do momento mágico dos primeiros 10 km ele tenha passado por algumas provas de 5 km antes. “A primeira prova de um corredor tem de ser de 5 km. E depois vêm os 10 km”, enfatiza Marcos Paulo Reis, diretor da Assessoria MPR, um dos mais conceituados treinadores do Brasil e defensor ferrenho dos 5 e 10 km. “Depois de um tempo na corrida, você tem o sistema aeróbico presente, mas ainda vai começar a trabalhar seus limiares”, diz Marcos Paulo.
“O cara que só roda, corre lento, não entende o que é fazer força, qual a mecânica da corrida e não sabe como subir o padrão de velocidade, o que você só consegue em treinos mais curtos de velocidade, voltados principalmente para essas provas de 5 e 10 km”, assegura Reis. Um bom gatilho para um novo degrau de distância é sentir-se rápido o bastante na distância anterior. Estou num patamar aceitável nos 5 km? Sinto-me veloz e quero uma distância maior? Bora para os 10 km. E assim sucessivamente.
As provas de 10 km também são particularmente interessantes porque, de certa forma, elas estarão sempre com você. Mesmo temporadas depois, quando você for um maratonista (uau!) e estiver preparando seu calendário, fatalmente participará de alguma de 10 km por aí. Pode ser até que seja apenas para acompanhar amigos, mas um bom conselho para qualquer corredor é jamais abandonar as provas mais curtas e intensas. “O caminho natural do corredor é ser bom e experiente em provas menores e ir aumentando as distâncias”, ensina Marcos Paulo. “Atletas de elite são bons primeiro nos 5 e nos 10 km, e depois se tornam grandes maratonistas. Tem muita coisa pra aprender nos 10 km”, conclui o treinador.
Correr uma meia-maratona merece maior atenção. Vinte quilômetros exigem mais de duas horas de esforço — ou algo entre uma hora e meia e duas, se você estrear com o pé direito. A meia-maratona já é uma prova que separa homens e mulheres de meninos e meninas — corrida de “gente grande”.
“Você tem de respeitar a distância”, enfatiza Marcos Paulo Reis. Do ponto de vista do treinamento, não há grandes mudanças do que se acostumou na fase dos 10 km. Serão os mesmos três ou quatro treinos semanais de corrida, com duas sessões de fortalecimento muscular e um dia de descanso.
O que se altera, não durante a semana toda, mas nos treinos longos, normalmente aos sábados, é o volume, que pode ser tanto estipulado em distância (mais habitual nos longões) ou em tempo de duração. O seu sábado, que terminava depois de 6 ou 8 km, agora terá 12, 15, 18 km (o que introduz na sua rotina os famosos géis de carboidrato, desnecessários nos 10 km, mas importantes a partir de uma hora de exercício contínuo).
Não se preocupe, será uma delícia! Mas pode ser que você também comece a lidar com alguma fadiga, dores musculares mais intensas e persistentes. “A meia exigirá um volume maior de treinamento. E não muito mais do que isso”, conta Marcos Paulo. “Mas o atleta precisará aprender a dosar o ritmo, trazendo para os 21 km aquilo que ele aprendeu nos 10 km.”
Entre os mandamentos do endurance, um tem de ser decorado e lembrado o tempo todo pelo estreante na meia-maratona. “Quanto maior a distância, maior o comprometimento.” Tanto quanto um bom treinamento específico de corrida, realizar uma boa prova significa prestar mais atenção nas happy hours — evite-as o máximo que puder, ou as reduza substancialmente.
Excesso de peso? Não é impeditivo. Tem muita, muita gente que corre uma meia com sobrepeso. Mas imagine correr com dois sacos de farinha de 2 kg cada presos à cintura. Vale a pena gastar energia que poderia te levar mais rápido à linha de chegada para carregar uma carga absolutamente desnecessária? Pense na prova quando estiver fazendo as refeições, alimente-se de forma equilibrada, seja tão saudável quanto possível — inclusive e fundamentalmente na véspera dos treinos longos.
“Você precisa dormir mais cedo e ter a alimentação mais regrada no dia anterior ao longo”, alerta a treinadora Natália Tolino. “Se você comer algo muito pesado, no dia seguinte sentirá as consequências. O treino pode não render, ou nem mesmo ser completo”, avisa ela. Comece a se acostumar a sacrificar a noite de sexta-feira em homenagem aos deuses da corrida.
Mas essas pequenas renúncias durante um ciclo de treinamento para a meia-maratona — de 12 a 13 semanas desde que você descenda de provas bem-feitas de 10 km — são insignificantes diante da glória de finalizar os primeiros 21 km. Imagine-se na linha de largada. Mentalize como será sua corrida, sua estratégia de prova… O quê? Você não tem uma estratégia?! Calma, muitos corredores ao seu lado também não as têm. Seja simples.
Trabalhe cada quilômetro, não force o ritmo além do que você treinou. “Use os três primeiros quilômetros para aquecer o corpo e dispersar a ansiedade”, aconselha Marcos Paulo Reis. “Mantenha um bom ritmo até o km 17 e, a partir daí, se estiver se sentindo bem, é possível acelerar e fazer uma prova progressiva”, completa ele. Ou simplesmente mantenha o pace até o final. E corra para os abraços!
Qualquer um pode completar uma maratona. Mas a maratona não foi feita para qualquer um. Ela exige, acima de tudo, respeito, dedicação e persistência. A maratona é especial. E não apenas pelos seus desafiadores 42 km. Existe toda uma aura que envolve a maratona, que faz os verdadeiros maratonistas estarem numa classe especial de corredores.
A história da maratona remete às batalhas gregas; a Fidípedes, que correu até morrer para entregar uma mensagem; ao nosso Vanderlei Cordeiro, símbolo olímpico de persistência. “Quem corre uma maratona é porque gosta muito, faz por amor”, sentencia Marcos Paulo Reis, que já treinou e levou centenas de pretendentes ao olimpo das corridas de rua.
Se você pretende ser sócio desse clube, de maratonistas autênticos, é simples: respeite a maratona! Em outras palavras, entregue-se a essa “rainha” por completo. Durante o ciclo de quatro meses, treine certo, coma certo, descanse certo. Esse é o preço. Não importa quanto você será veloz, se chegará sorrindo ou caminhando. Mas saber que você se preparou da melhor forma, se dedicou por completo, é o maior prêmio que um maratonista amador pode almejar.
O período de treinamento específico de uma maratona demora quatro meses, mas a criação do maratonista começa bem antes. “Se fizer dois anos de preparação, você vai chegar muito bem. Pode parecer muito, mas não é”, diz Marcos Paulo. Não se trata de um ciclo especializado para os 42 km de dois anos. Nesse período estão incluídas provas de 5, 10 e 21 km, em que o corredor descobre muito sobre a “máquina” que vai levá-lo à condição de finisher da maratona.
“O corredor estará com muito mais noção da sua mecânica, mais forte, muito mais perto de seu peso ideal, entendendo seus padrões de movimento, seus limiares, sentindo sua evolução como corredor”, explica Reis. Uma base sólida, comprometimento e um desejo inato de correr a maratona são fundamentais para o sucesso do corredor. “O atleta precisa ter muita vontade de correr uma maratona. Você consegue, mas quer correr uma maratona?”, questiona Natália Tolino.
Como a resposta certamente é afirmativa, é bom o futuro maratonista estar preparado para uma vida franciscana, pelo menos durante o ciclo específico. “A maratona exige mais esforço físico do que outras distâncias. O comprometimento tem de ser muito maior”, avisa Natália. “Não apenas no treinamento da corrida, mas na alimentação, no fortalecimento muscular e mesmo na vida social. Não tem como realizar um ciclo de quatro meses indo pra happy hours, baladas, dormindo tarde. O álcool atrapalha muito o desempenho nos treinos”, descarta ela.
Tudo depende do que você espera da prova. Aquela história do primeiro parágrafo de respeitar a maratona, lembra? “Se você apenas quiser completar, pode treinar três vezes por semana, levar uma vida normal, com uma boa alimentação e sabendo o dia que vai tomar uma cervejinha ou não”, ameniza Marcos Paulo. Agora, adivinha se não tem um porém? “Mas, à medida que o corredor quer mais, aí aparece o sacrifício…”, completa ele, e coloca as coisas no seu devido lugar.
Todavia, o maratonista é um sujeito com algumas características peculiares. Um cara que se propõe a se desafiar, treinar 60 ou 70 km por semana por uma estação inteira, fora musculação, massagens, plano de dieta alimentar, redução drástica da vida social para finalmente correr 42 km e se sentir a pessoa mais feliz do mundo, certamente é especial. Vai lá buscar sua carteirinha, guerreiro! A “rainha” te espera de braços abertos.
Por Zé Lúcio Cardim
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