Por Nanna Pretto
Que a participação feminina na corrida de rua cresce a passos largos todo mundo já sabe. Mas são passos tão largos quanto os dos homens? E por que elas ainda sofrem mais, se machucam mais e não conseguem competir na mesma velocidade que eles? A resposta está diretamente ligada a questões hormonais (a presença do hormônio sexual masculino, testosterona) e fisiológicas (o tamanho do corpo e a composição corporal).
A mulher produz 85% menos testosterona (principal hormônio relacionado à geração de força) que o homem. “Isso está relacionado à menor quantidade de massa magra que elas têm”, explica Fabrício Naves, médico do esporte pela Sociedade Brasileira do Esporte e Exercício, que atua no Centro Olímpico de Treinamento e Pesquisa de São Paulo e coordena a Residência de Medicina Esportiva da Unifesp.
Com menos músculos, as mulheres são, sim, mais fracas que os homens. “Como sabemos que a produção de força de uma mesma quantidade de músculo não difere significativamente entre pessoas dos dois sexos, chegamos à conclusão de que a força depende muito mais de quantidade do que de qualidade. Isto é, quanto mais músculo, mais força e maior capacidade de gerar trabalho”, explica Naves.
O médico reforça a tese elaborada em 1991 pelo fisiologista sul-africano Tim Nokes, que diz que corredoras de elite carregam proporcionalmente 5 kg a mais de gordura e 3 kg a menos de músculo que os homens.
“Fisiológica e hormonalmente os dois são, sim, diferentes”, afirma Silvana Vertematti, cardiologista e médica do esporte do Complexo Hospitalar Edmundo Vasconcelos. Mas isso não quer dizer que as mulheres e o homens precisam ter treinos diferentes. “O treinamento pode ser o mesmo, o que muda é a intensidade. A mulher não suporta a mesma carga que o homem, e isso é fisiológico.”
Além de uma quantidade menor de músculos, as mulheres também possuem um coração menor — e que, consequentemente, bombeia uma quantidade menor de sangue para o corpo em cada batida —, pulmões menores, 6% a menos de células vermelhas e de 10% a 15% menos hemoglobina por cada 100 ml de sangue. “Tudo isso somado acaba gerando um VO2 máximo de 15% a 25% menor que o dos homens”, explica o médico Fabrício Naves.
Não param por aí as diferenças. A mulher tem menos força que o homem, entre 54% e 80%, dependendo do grupo muscular. Tem também pernas mais curtas, o que se reflete na passada menor. “Esses fatores explicam por que os homens correm em torno de 10% mais rápido que as mulheres”, acredita a nutricionista Fabiana Honda, da PB Consultoria em Nutrição.
“Em média, elas são 10 a 15 cm menores, pesam entre 10 e 20 kg menos que os homens e necessitam de menos calorias”, explica Fabiana. Além disso, têm um metabolismo basal cerca de 10% menor e uma parcela de gordura 10% maior, aproximadamente, que a dos homens.
Só isso? Não. Biomecanicamente, as mulheres também agem de outra forma, já que possuem membros mais curtos e superfícies articulares menores, o que diminui a potência. Além disso, os ligamentos são mais frouxos, os quadris mais largos e os músculos vasto medial oblíquo e os abdutores mais fracos. “Esses fatores combinados podem predispor a lesões na coluna, quadris, tornozelos, pés e joelhos”, avalia Naves. No geral, as mulheres têm maior mobilidade, enquanto os homens têm mais força. Isso acontece porque elas têm ligamentos e músculos mais elásticos e flexíveis, devido à menor densidade dos tecidos musculares. “Daí surgem as diferenças de desempenho de acordo com as exigências de cada esporte”, diz Fabiana.
Segurando o xixi
De acordo com uma pesquisa da Corpore publicada há cinco anos, 25% das corredoras apresentam perda de urina durante uma corrida e 13% durante os treinamentos. Isso acontece porque o contato dos pés com o solo provoca um impacto maior sobre a pelve, e o estresse e a fadiga muscular durante a prova facilitam a incontinência urinária, já que os músculos do assoalho pélvico são constantemente utilizados durante as atividades físicas.
A ginecologista do esporte Tathiana Parmigiano, do Hospital HCor, aconselha que toda mulher corredora fortaleça a musculatura do assoalho pélvico. “Trata-se da musculatura responsável por dar sustentação aos órgãos pélvicos — útero, bexiga e intestino —, absorver o impacto e garantir a continência fecal e urinária”, justifica. Na avaliação da médica, aproximadamente 50% das atletas apresentam queixas de incontinência urinária, constantemente subestimadas, mas que podem levá-las a abandonar o esporte. “As corredoras são uma população de risco, pois o ato de correr gera um impacto de três a quatro vezes o peso corporal”, alerta a ginecologista. “Fisioterapeutas especializadas em uroginecologia podem realizar a avaliação dessa musculatura e estabelecer exercícios de fortalecimento”, aconselha.
Menos nutrientes, menos energia Em idade fértil, as mulheres perdem mais sangue quando menstruam, o que eleva a necessidade de ferro e ácido fólico. “Porém, muitas delas não conseguem repor a quantidade recomendada de ferro, tornando-se mais suscetíveis à anemia”, diz Fabiana Honda. Daí o cansaço excessivo nos treinos, a falta de disposição e a sensação de fraqueza e até sintomas mais graves, que podem fazer com que muitas atletas parem de treinar.
As mulheres também precisam consumir mais alimentos considerados fontes de vitamina E (como gérmen de trigo, ovos, oleaginosas e óleos vegetais, por exemplo) do que os homens. “Essa vitamina atua regulando o nível de prostaglandina, que se eleva durante a menstruação para a contração da parede uterina, provocando dores”, explica a nutricionista da PB. O consumo de vitamina E, aliás, pode ser uma alternativa natural para quem sofre de muitas cólicas a ponto de ficar sem treinar.
Há ainda a necessidade maior de vitamina D e de magnésio, nutrientes essenciais para as mulheres, por conta da fixação dos ossos. Isso porque o hormônio sexual feminino, o estrogênio, tem efeito protetor do osso e, com a sua diminuição ou fim da produção (na menopausa), os níveis de cálcio caem drasticamente e sua velocidade de fixação no osso diminui, com a consequente perda da massa óssea e o início de um quadro de osteoporose.
Mais corrida, sexo melhor
Você pode não acreditar, mas a libido sexual da mulher está mais relacionada ao seu bem-estar psicológico do que aos seus hormônios. Quem garante é a médica Mona Shangold, diretora do Centro de Saúde da Mulher e Ginecologia de Esportes, na Filadélfia (EUA), e autora de diversos livros de saúde feminina, entre eles Women and exercise: physiology and sports medicine. Com isso, a corrida gera basicamente três efeitos positivos sobre a libido feminina:
– A sensação de conforto e prazer ajuda no relaxamento, que é essencial para a mulher ter vontade de fazer sexo.
– Melhora a estética, o que faz as corredoras sentirem-se melhor e mais confortáveis com o próprio corpo e mais dispostas a terem uma relação sexual.
– Aumenta os níveis de testosterona nas mulheres que, entre outras características, é responsável pelo comportamento sexual e aumento da libido. Como o efeito é de curta duração, é melhor treinar regularmente para manter a forma: sexual e nas pistas.
Seguindo a tabelinha
Engana-se quem pensa que a tradicional tabelinha tem como única função a contracepção. “Nada menos que 80% das corredoras preferem treinar no período após o fluxo menstrual”, garante Tathiana Parmigiano. Ela recomenda que seja feito um planejamento do ciclo de corrida em relação ao calendário menstrual da mulher.
“Se o treinador se dispuser a planejar o treino de acordo com essas fases, a atleta provavelmente terá mais resultado na sua performance”, acredita.
Porém, a médica do Hospital HCor explica que nem sempre isso é possível, em função da grande quantidade de alunos e, principalmente, por se tratar de uma questão muito individual de cada mulher, sendo inviável padronizar os treinos. “Essa já é uma realidade aplicada em atletas do sexo feminino em busca de melhor rendimento em treinos e competições.”
Na avaliação de Diogo Andrade, diretor técnico da Assessoria Esportiva Triação, de Salvador, o ciclo ovulatório menstrual é o norteador para a montagem dos treinos. “Em cada fase desse ciclo, o corpo da mulher responde de forma diferente. Portanto, é necessário adequar as cargas, levando-se em consideração cada período.”
Quanto aos efeitos da tensão pré-menstrual, um estudo publicado em 2002 pela universidade British Columbia, do Canadá, mostrou que entre 60% e 70% de um grupo de mulheres sedentárias que sofriam de TPM e iniciaram atividade aeróbica apresentaram diminuição dos sintomas que aparecem nessa fase. Após seis meses, a corrida as libertou de inchaços, dores nos seios, irritabilidade, depressão e cólica.
A explicação para isso é que ao praticar exercícios físicos, o organismo começa a liberar, no cérebro, a endorfina, um neuromediador que facilita a comunicação entre as células nervosas, proporcionando a sensação de paz e bem-estar. A ação da endorfina ajuda a minimizar os principais sintomas da TPM: depressão, ansiedade, irritabilidade e alteração do humor.
De igual para igual
Por mais que inúmeras diferenças existam — sendo elas fisio ou biológicas —, não se pode dizer que mulher é o sexo frágil, que não suporta ser submetida ao estresse e que não aguenta correr longas distâncias. Pura bobagem. “O treino da mulher exige mais cuidados, tem de ter um caráter preventivo, mas isso não quer dizer que ela não possa correr tanto quanto o homem”, garante Nevas. “A mulher e o homem podem ter treinos iguais e correr as mesmas distâncias. A diferença estará na intensidade dessa corrida”, concorda Silvana.
“O que as mulheres precisam é de um aporte bem adequado do ponto de vista nutricional e de reforço muscular, pois o seu morfotipo tende ao aparecimento de lesões específicas”, explica Diogo Andrade. Do ponto de vista alimentar, como os treinos de longas distâncias tendem ao aumento do catabolismo proteico, o suporte nutricional é indispensável. “Uma vantagem é que a mulher, por ter uma capacidade muito boa de oxidar os ácidos graxos (gorduras), pode ir muito bem em provas de longa duração”, diz o treinador.
A cardiologista Silvana explica que os exercícios que ficam muito acima do limiar anaeróbico são os que vão causar alterações nos eixos hormonais. “A mulher precisa ter 22% de gordura em sua massa corporal para manter um perfeito ciclo hormonal. Se emagrecer demais por conta dos treinos, ela poderá sofrer alterações no futuro”, alerta a médica. No entanto, se o treinamento respeitar os seus limites, não há nada que impeça a mulher de galgar os mesmos objetivos que o homem. E de chegar lá.
Penso, logo corro
Mas e a favor? O que o sexo feminino tem ao seu lado, como carta na manga para desenvolver um treino eficiente e tão bom quanto os dos homens? “A mulher é mais comprometida, mais determinada e paciente para alcançar bons resultados”, avalia Camila Hirsch, diretora técnica da assessoria Personal Life.
O psicólogo esportivo e presidente da Ceppe (Consultoria, Estudo e Pesquisa da Psicologia do Esporte), João Ricardo Cozac, diz que a diferença comportamental é evidente entre os sexos. “O homem é mais ávido pelos resultados, enquanto a mulher é mais focada no desempenho. Por isso, muitas vezes o desempenho delas é muito bom, enquanto os homens têm um resultado frustrante”, justifica.
Isso acontece porque a mulher se permite ter metas longas, sem a ansiedade de conquistar logo o resultado. “O homem força, termina seu objetivo e se machuca. Aí tem de ficar parado por um tempo. A mulher conquista o mesmo objetivo com um pouco mais de tempo, é verdade, porém com mais saúde.”
De acordo com Camila Hirsch, pela sua característica viril e competitiva, em geral o homem corredor muitas vezes coloca tudo a perder. Eles vão ao extremo do treinamento, às vezes roubam alguns quilômetros, não têm paciência de ver o desenvolvimento do treino. “Já a mulher sabe usar a cabeça para comandar o treinamento. Independentemente da sua força, ela, em geral, consegue fazer um treino ou uma prova melhor do que o homem”, defende.
A mulher também tem mais tolerância à dor, está mais preparada para sofrer e sabe lidar bem com isso. “As próprias cólicas menstruais e a gravidez são fatores que ensinam a mulher a administrar bem a dor”, explica Fabrício Naves. E na corrida, como algumas dores são praticamente inevitáveis, de nada adianta tanto condicionamento e capacidade se o psicológico não consegue administrar o estresse. O psicológico é essencial para o treinamento bem feito. “Se não tem uma estrutura psíquica bem formada, o atleta, seja homem ou mulher, coloca tudo a perder”, avisa. Nesse ponto, aliás, os especialistas concordam: a medalha vai para as mulheres.
(Fontes: Camila Hirsch, diretora técnica da assessoria Personal Life especializada em fisiologia do exercício; Diogo Andrade, diretor técnico da Assessoria Esportiva Triação e especialista em fisiologia do exercício pela Universidade Gama Filho/RJ; Fabiana Honda, nutricionista da PB Consultoria em Nutrição; Fabrício Naves, médico do esporte pela Sociedade Brasileira do Esporte e Exercício, que atua no Centro Olímpico de Treinamento e Pesquisa de São Paulo e coordenador de Residência de Medicina Esportiva da Unifesp; João Ricardo Cozac é psicólogo esportivo e presidente da Ceppe (Consultoria, Estudo e Pesquisa da Psicologia do Esporte); Silvana Vertematti, cardiologista e médica do esporte do Complexo Hospitalar Edmundo Vasconcelos; Tathiana Parmigiano ex-atleta do Esporte Clube Pinheiros, ginecologista das Seleções Brasileiras de Basquete e Judô, ginecologista do Centro Olímpico de Treinamento e Pesquisa de São Paulo e ginecologista do esporte do Hospital HCor (Hospital do Coração)
(Matéria publicada na Revista O2 – edição #107 – março de 2012)
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