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Várias pessoas me escreveram para reclamar que ando azedo. Embora eu seja profundamente feliz, a opinião dos leitores é muito importante — e se eles acham que estou mal-humorado, a culpa é minha. Duas crônicas causaram esse sentimento: uma em que falava dos corredores “coxinhas” e outra dos “chatos” que compartilham seus treinos nas redes sociais.
O Ziraldo sempre me falou que a coisa que mais faz falta na língua portuguesa é o ponto de ironia. Até chegou a inventar um, representado por uma exclamação ao contrário (parecida com um “i”). A ideia (genial) não foi adiante. Por trás do esforço do mestre em criar um símbolo gráfico para a ironia estava a constatação de que nem sempre as pessoas percebem o que queremos transmitir por escrito. Muitas vezes, textos que soam amargos foram feitos com um sorrisinho no canto da boca, da mesma forma que alguns dos mais simpáticos da literatura foram produzidos por pessoas complexas e até desagradáveis. Nada disso, no entanto, me exime de culpa na percepção de azedume dos leitores. No processo de comunicação, a culpa pela compreensão errada da mensagem é sempre do emissor.
Feita essa longa introdução com cara de desculpas — ou esse longo pedido de desculpas com cara de introdução —, queria abordar um tema nada polêmico: a corrida dos sonhos. Todos nós, corredores, temos aquela prova especial que sonhamos completar. Uma prova célebre, sobre a qual o mundo inteiro comenta. Ou uma corrida significativa, como a maratona da sua cidade natal, uma cross country cheia de pirambeiras ou a primeira de uma distância que você jamais ousou percorrer. Os mais exagerados sonham com as ultramaratonas, outros querem mais do que correr e tentam o triathlon, outros ainda se imaginam fazendo o percurso original entre Maratona e Atenas, na Grécia… A prova em si não importa. O que importa é o sonho, o que te faz calçar os tênis todos os dias, mesmo com uma vida tão agitada. Se você ainda não tem essa prova, deveria ter.
Carlos Drummond de Andrade publicou um texto célebre festejando o gênio que teve a ideia de cortar o tempo em fatias, de forma que pudéssemos comemorar os aniversários, os réveillons e datas importantes das nossas vidas. Os corredores devem fazer o mesmo: dividir suas trajetórias em períodos de treino entre provas marcantes. E escolher, acima de tudo, a sua dos sonhos. Aquela prova. A grande prova. A prova para contar para os netos — ou para não contar para ninguém e guardar as lembranças apenas para si. O ideal, penso eu, é que a corrida dos sonhos demore muito para ser completada, como um objetivo solene e distante, que nos faz correr com a cabeça nas nuvens e os pés no chão, mas olhando sempre para o horizonte.
A rigor, a prova dos sonhos poderia até nunca ser completada. Não haveria nenhum problema nisso, desde que a simples existência desse objetivo tenha cumprido seu papel de nos fazer progredir. Eu brinco com meus amigos que, aos 50, ainda não desisti de ganhar uma medalha de ouro olímpica. Ainda posso tentar o tiro, a equitação de adestramento ou alguma prova que não tenha na idade uma condição de sucesso. Eu provavelmente jamais ganharei uma medalha de ouro, mas pensar que isso ainda pode ser possível é um exercício que enche minha alma de coragem e a minha vida de sentido.
Embora eu mesmo não tenha percebido, os leitores acabaram se provando mais conhecedores da minha alma do que eu. Hoje, percebo que intuíram a razão por trás do meu azedume. Sacaram algo que revelo agora: eu não vinha correndo nos últimos meses. Muita coisa ao mesmo tempo, em muitas frentes diferentes. Mas agora eu voltei a treinar. E, com os treinos, voltaram os textos sem pontos de ironia e sem polêmicas. A corrida de fato faz bem. Até para a habilidade literária das pessoas.
(Coluna publicada na Revista O2 – edição #145 – junho de 2015)
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