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Não há narrador que resista. Quando os contendores da prova se aproximam da linha de chegada, sempre há alguém a gritar, como se fosse a última bolacha do pacote: “Entraram na reta final!” Há até os que, mais dramáticos, usam o verbo no presente: “Estão na reta final” e tal e coisa e coisa e tal.
A expressão talvez só seja superada pelo tal “sprint final”, que é como os narradores gostam de chamar a correria derradeira para ver quem chega primeiro numa corrida. Até hoje não entendo por que não podem chamar de arrancada ou de correria desbragada…
Não importa.
O que vale dizer é que nenhum desses chavões ao menos passa perto da verdade dos fatos, a verdade verdadeira, a vida real, aquilo que os corredores sentem e experimentam e vivem.
Porque o fato real, a verdade verdadeira, a vida como ela é diz o seguinte: quando começa, a maratona já terminou.
A reta de chegada, no real, o sprint final, na vida completa, é aquele que nos leva até a hora da chegada. Depois é só um detalhe, apenas 42.195 metros entre o tiro de largada e o pórtico que abraça o atleta exausto, feliz, quebrado, sofrente, do jeito que for, como der e vier.
Aparecer na largada é o mais difícil.
Eu que o diga.
Nesta semana em que você lê este texto estou na reta final, na última arrancada para dizer “presente!” na largada de mais uma maratona. Será minha prova longa de número 36, três dúzias de corridas de 42,195 m a cem quilômetros.
Como aconteceu em cada uma das ocasiões anteriores, chego sem saber o que vai acontecer, tenho dúvidas sobre os treinos que realizei, subestimo meu estado geral de saúde, duvido de minha sanidade mental e, acima de tudo, tenho medo.
“Será que vou conseguir chegar?”, me pergunto agora, ainda longe de embarcar para o destino maratonístico.
Vou caminhar? Vou correr? Vou me quebrar? O joelho esquerdo vai desandar? Vou ficar com caganeira? O quadril vai explodir em dor? Os pés não vão resistir? Vou escorregar? A tíbia não vai resistir? Cansarei no décimo quilômetro? Vou passar vergonha? A maratona é muito mais do que aqueles metros medidos no asfalto. Ela cobra do desafiante a segurança da vida, o encontro com o mais íntimo do seu ser.
Não se trata de algo épico nem heroico. Pode até ser coisa de covardes, de poltrões, que buscam na exaustão física prova de coragem que não mostram na vida.
Eu não sei. Já passei muitas horas no asfalto, filosofando com o que queria e o que não queria, tentando chegar a uma formulação perfeita, precisa, um diagnóstico do ethos do corredor e da corrida, do caráter e da moral do atleta. Não há, não vi, não encontrei.
Para mim, é tudo sofrimento, dúvida e sonho até a reta final –que não é na chegada, e sim na partida, no momento de largar. Quando começa a maratona, o tempo para e as elucubrações vão para o espaço. Cada passo é um mergulho na vida real, que explode de ser. A gente finge que está cuidando do ritmo, olhando o relógio, prestando atenção nos quilômetros, controlando a respiração, ficando atento à hidratação; no cérebro vaidoso, porém, mil, milhões, bilhões de neurônios se regojizam e cantam a uma só voz: “Agora é nóis, truta!”
E a gente vai sem ter por que nem para onde, simplesmente segue a vida, que é maratona corrida.
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