Corredor queniano: um milagre do esporte

Atualizado em 01 de julho de 2016

É noite na faixa de Gaza. Na rua de terra batida, sobre a qual repousam pedras que horas antes haviam sido arremessadas do outro lado do muro de concreto, meninos israelenses brincam de correr e jogam futebol. Não é um corredor queniano, mas da mesma forma a luz é fraca, de forma que os garotos são obrigados a trocar passes curtos em direção ao gol adversário. Passes longos não servem, pois mal se enxerga quem está a mais de um par de metros de distância. As crianças rodeiam a bola como os mosquitos cercam a lâmpada solitária do poste de iluminação. Sou capaz de jurar que as marcas no poste são de tiros de fuzil. A bola, centro do universo dos meninos, vai sendo carregada pela constelação de pequenos astros que gravitam ao redor dela, ora para lá, ora para cá… Até que um chute mais forte a lança para o outro lado do muro, para um outro país, ou melhor: para o outro lado do mundo. No caso do corredor queniano, o tal chute seria um sprint.

Conformados, os meninos começam a se retirar em direção às suas casas. A bola jamais voltará. Eles cresceram com a noção de que a única coisa capaz de voltar do outro lado daquele muro são as pedras que eles eventualmente arremessam para lá. Ás vezes, para o corredor queniano é igual.

O perfil de Nova York jamais foi o mesmo depois que os proprietários dos Brooklin Dodgers demoliram o estádio da equipe e a mudaram para Los Angeles. Tragédias do esporte são assim: uma bola perdida, um time que se vai, a derrota na Copa do Mundo, o recorde não alcançado por uma fração de segundo, o gol anulado. O esporte é mais sutil do que a vida concreta. Suas metáforas são mais delicadas. Seus seguidores, mesmo os mais fanáticos, são mais afetuosos. E o corredor queniano tem milhares deles.

Ainda em Nova York, o ídolo maior do time que sucedeu os Dodgers no coração dos trabalhadores — os Yankees — atende pela alcunha de “El Duque” Hernández. Ele veio de outro país, fugindo de um regime político repressor. Hernandez é cubano. E só mesmo a magia do esporte para fazer com que a maior ilha do capitalismo adotasse como herói um cidadão da última ilha comunista no mundo. O esporte desconhece fronteiras políticas. Suas diferenças são sempre visíveis, mensuráveis, incontestáveis. Ainda que as nações mais ricas tenham um compreensível domínio em algumas modalidades, haverá sempre um Garrincha ou um corredor queniano pronto para derrubar preconceitos. As diferenças do esporte não são definitivas.

De volta a Gaza, um som abafado é ouvido pelos meninos. Algo se chocara contra o chão — algo bem diferente de uma pedra. Eles voltam o olhar para seu campo dos sonhos e se deparam com ela: a bola. Embora os meninos israelenses e palestinos não atentem para a data, é noite de Natal. Nenhum jornal noticiará o evento, mas ali, naquela rua de terra batida e mal iluminada, mais um milagre do esporte acabara de ocorrer. Assim como acontece com o corredor queniano.

(Coluna publicada na Revista O2 – edição #116 – dezembro de 2012)