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Encontro com a lenda

Atualizado em 28 de julho de 2017
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O que estou prestes a admitir não é bonito. Também não está na lista dos momentos dos quais me orgulho, mas precisa ser contado. Tudo começou há quase dois meses. Era um dos meus últimos treinos longos antes da Maratona Internacional de São Paulo quando conheci Robson*. Ou melhor, quando ele me encontrou. A planilha pedia 30 km, então achei por bem preparar o aparato todo: mochila de hidratação, cápsulas de sal, gel de carboidrato, fones de ouvidos, enfim, kit “básico” para um longão. Ou assim eu imaginava que fosse.

Cruzei com Robson logo no segundo quilômetro do percurso, e confesso que simpatia não seria a melhor palavra para definir meu comportamento. Está certo que não sou de muito papo, mas não era esse o caso. Era pura arrogância mesmo. Apenas respondi o cumprimento daquele estranho, deixando que Marcelo, meu companheiro de aventuras, desse a devida atenção a ele.

De orelhada, fui acompanhando a conversa dos dois enquanto corria. Ou seria um monólogo? Robson puxava forte o ritmo enquanto contava de sua rotina de treino. Falava com propriedade de sua alimentação na mesma rapidez com que contava dos 11 anos em que seu cachorro vira-lata o acompanhou nos treinos e a tristeza de quando veio a falecer.

Robson vestia uma regata branca surrada e calção excessivamente grande para seu corpo magricelo. As meias eram puídas, largas no calcanhar e o tênis bem gasto. Ainda assim, nosso coelho estava muito bem à vontade. Dava tiros e voltava em nossa direção para nos acompanhar. Conversava sem perder o fôlego enquanto corria de costas para nos olhar de frente. Mas ele não estava se mostrando nem contando vantagem. Tudo nele era muito natural.

O caminho todo me mantive muda, apenas prestando atenção naquela figura que, sem a menor cerimônia, se convidou para fazer parte do nosso treino. Aos poucos fui sentindo um incômodo inexplicável. Quando esse sentimento apertava, eu corria mais rápido, na tentativa de apagar qualquer pensamento e limpar minha mente. Mas o aborrecimento persistia.

 

 

Completávamos os 10 primeiros quilômetros sem que ele tomasse ou comesse nada. Achei que logo ele nos deixaria, afinal, como seria possível ficar tanto tempo sem se reabastecer? Era óbvio que aquele ilustre desconhecido estava fazendo “tudo errado”. Mal sabia a sabichona aqui quantas lições Robson ainda me daria até o fim daquele treino.

O caminho de volta foi do mesmo jeito. Mais tagarelice até que lá pelo quilômetro 20 finalmente ele parou. Avisou que iria ao posto de gasolina fazer xixi. Marcelo ficou na dúvida se deveríamos esperar nosso novo amigo, mas a egoistinha aqui quis seguir adiante. Ele nos alcançaria afinal de contas. E de fato alcançou, pouco tempo antes de quebrarmos. Exatamente. Nós, os mais preparados, não demos conta do treino. Robson seguiu firme, lamentou a nossa situação e se despediu com seu sorriso largo banguela.

Rendidos no ponto de ônibus, enquanto aguardávamos nossa carona, nenhum dos dois conseguiu falar o óbvio. O que tanto me incomodava era, na verdade, um misto de prepotência com vergonha. Enquanto Robson corria alegre, solto, sem nenhum aparato, ele me esfregava na cara que eu não precisava de nada daquilo. Na verdade, foi mais profundo. Me senti uma farsa. Alguém que no final dos treinos parecia mais ansiosa pela selfie perfeita no Instagram. Mas não era tarde demais para fazer um exame de consciência e reajustar prioridades.

Desde aquele encontro mágico, eu tenho dificuldade em sair para outros longões com todo aquele aparato. Não estou dizendo que eram superficiais ou desnecessários, mas me fez repensar totalmente as “necessidades” que nós corredores colocamos como essenciais.

Algum tempo depois, reencontramos Robson. Foi coisa rápida, apenas o cumprimentamos, já que faríamos um trajeto diferente do dele. Mas confesso que deu vontade de segui-lo. Alguma coisa dentro de mim havia mudado. Aquela figura não me ameaçava mais. Eu estava em paz. Foi longe dos holofotes que obtive uma das maiores lições da minha vida. O essencial está na simplicidade. E Robson terá meu eterno respeito por essa lição.

*O nome verdadeiro do meu novo amigo foi preservado porque não pedi autorização para compartilhar sua história