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Homem do Ano

Nunca na história das maratonas se vira uma corrida tão desabrida.

Tal como gladiador que, em vez de feras, enfrentasse o tempo, o homem ofertava o peito ao vento, movia braços e pernas em ritmo punitivo, fazia tudo o que não estava nos manuais, o que era tabu para treinadores e especialistas em corria.

Desafiava o recorde mundial sem pensar em poupar energia; ao contrário, se entregava com vigor, comendo segundo por segundo, quilômetro a quilômetro, sempre num ritmo muito superior ao que tinha sido mantido pelo recordista anterior quando cravaram a até então melhor marca da história.

“Não vai conseguir”, dizia um treinador transformado em comentarista de televisão; “daqui a pouco vai cansar”, secundava o narrador também transformado em especialista.

Dessa vez, os deuses ouviram os sabichões da TV. De fato, o cara cansou. Bufou, reduziu, perdeu a passada e o ritmo, arrastou-se por dois ou três quilômetros, o suficiente para as matracas televisivas vaticinarem seu fim.

Ele voltou. Arrancou novamente, agora em franca desvantagem em relação à marca do recorde.

Seu esforço lembrava a coragem de Alexandre que, ao saber que os adversários eram tantos e com tamanho poder militar que as flechas de seus arqueiros cobririam a luz do sol, disse: “Melhor: combateremos à sombra”.

 

 

Parecia que iria conseguir. Quando viu o relógio cruel indicando restos de segundo inferior à necessária, abriu os braços em revolta, desânimo, desagrado. E seguiu para completar a prova no recorde do percurso, míseros oito segundos acima da melhor marca mundial.

A façanha –ou quase-façanha—foi do queniano Eliud Kipchoge na Maratona de Londres. Ele não se confirmou como homem mais rápido do ano, pois o baixinho Kenenisa Bekele, da Etiópia, foi dois segundos mais rápido ao vencer a Maratona de Berlim.

Apesar de mais veloz, Bekele não tira de Kipchoge o título de “Homem do Ano” outorgado por este cronista. Valem para o queniano não apenas sua performance londrina como também seu desempenho na maratona olímpica, no calor do Rio, quando deu show de elegância e excelente porte de corredor, além de aula de técnica do bom uso da energia nas passadas no asfalto.

Kipchoge é um dos envolvidos no projeto da Nike para tentar quebrar a marca das duas horas na maratona. A Adidas também está investindo em projeto semelhante, tendo nas suas forças o atual recordista mundial, Dennis Kimetto.

Especialistas que eu consultei via internet consideram que isso não passa de jogada de marketing. Hoje o recorde mundial é de 2h02min57; cortar quase três minutos de uma talagada só nos próximos anos é tarefa considerada impossível por muitos observadores de alto gabarito técnico.

PS1.: Para manter o desejado equilíbrio de gênero, deveria escolher também a “Mulher do Ano”. O problema é que, considerando as transmissões a que assisti, não dá para dizer que alguma das atletas teve um desempenho muito mais maravilhoso do que as demais. Talvez tenha ocorrido, mas a geração de imagens acaba sempre privilegiando a prova masculina.

De qualquer forma, indico a queniana Jemima Sumgong, que, como seu compatriota, foi campeã em Londres e na maratona olímpica. Na prova londrina, ela demonstrou uma coragem e uma determinação que poucos apresentam. Levou o maior tombo na altura do sexto quilômetro, machucando uma das pernas e ferindo a cabeça; mesmo assim, levantou-se e seguiu firme e forte até a vitória.

PS2.: Minha próxima coluna chega só no ano que vem. Enquanto isso, fique com meu abraço e um forte aperto de mão. Boas-festas e ótimo Ano Novo para você e sua família, amigos corredores e não corredores.

Rodolfo Lucena

59, é jornalista, gaúcho, gremista, cachorreiro, escritor e ultramaratonista – já fez mais de 30 provas longas em cinco continentes. Autor de “Maratonando” e de “+Corrida”, atuou na Folha de S. Paulo por mais de 25 anos, faz o Blog do Lucena (lucenacorredor.blogspot.com) e o Maratonando com o MST (mstmaratonando.wordpress.com).

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