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Iram Leon e a sua corrida contra o câncer

Iram Leon está vivo e saudável: no início deste mês, no frio rigoroso do inverno norte-americano, foi visto correndo sem camisa pelas ruas de Austin, Texas, onde vive. Era um treininho simples, de uns 35 km mais ou menos, ainda que não tenha nenhuma maratona em vista.

“E daí?”, alguém pode perguntar. Pelo mundo afora, há gente correndo no frio e no calor, saudável ou nem tanto, fazendo mais ou menos quilometragem. Qual é a notícia?

Simples: Iram Leon, um sujeito de 36 anos nascido no México, deveria estar morto de acordo com todos os prognósticos médicos que ouviu em 2010, depois de desmaiar em uma festa de aniversário.

Exames revelaram que Iram Leon tinha um câncer no cérebro, e o mal não podia ser completamente extirpado. Passaria por diversas terapias paliativas, mas o prognóstico não era animador: a sobrevida média de pacientes com esse tipo de câncer é de quatro anos; apenas um terço vive até cinco anos depois do diagnóstico inicial.

Para piorar as coisas, no meio da confusão do tratamento, ele enfrentou a separação. O lado bom é que ficou com a filha pequena. Com ela, redescobriu a corrida, e engole quilômetros como terapia.

Eu entrevistei Iram Leon em 2013, quando ele estava planejando vir correr no Brasil – um sonho antigo. Não veio, mas minha conversa com ele resultou em uma boa reportagem, publicada na “Folha de S. Paulo” em estilo depoimento (leia em http://f5.folha.uol.com.br/humanos/2013/12/1391301-corredor-com-cancer-no-cerebro-leva-filha-as-provas.shtml).

No jornal, a gente consegue publicar o que é possível, o que cabe no espaço que sobra depois de colocados os anúncios. A entrevista com Iram, realizada por e-mail, foi muito mais longa e detalhada.

Iram Leon respondeu com paciência a mais de vinte perguntas que lhe mandei; ao fazer a tradução, já fui deixando o texto em estilo depoimento e reorganizando as respostas para dar uma sequência cronológica ao texto.

 

 

Segue, pois, o depoimento original de IRAM LEON, o atleta que corre contra o câncer.

Nasci em Chihuahua, Chihuahua, México, em 08/08/80. Sou formado em psicologia e teologia. Atualmente não trabalho. [Por causa do câncer] Eu tenho alguns problemas de memória; estava trabalhando como agente de condicional de adolescentes e acabei demitido por ter cometido erros no trabalho.

Eu corro e pratico esportes a vida inteira, desde sempre. Participava do time de atletismo já na escola primária (terceira série); depois, na universidade, competi em cross coutry. Depois de formado, já adulto, parei de correr até que fundei um grupo de corrida. Eu não gostava de correr sozinho, praticamente nunca corri a não ser em grupo. Também gosto de jogar futebol e, mais recentemente, tenho praticado frisbee.

No dia cinco de novembro de 2010 eu tive uma convulsão numa festa de aniversário e acordei em uma ambulância. Fizeram uma tomografia e um exame de ressonância magnética e descobriram que havia alguma coisa errada na minha cabeça.

Como era madrugada de sexta para sábado, não foi possível fazer logo a biópsia: tive de esperar até segunda no hospital. Vários amigos foram me visitar. Os resultados deveriam ficar prontos em dois a três dias, mas os médicos levaram quase três semanas para concluir que eu tinha astrocitoma difuso de nível 2 em meu lóbulo temporal esquerdo.

Na verdade, eu dei um jeito de me esgueirar para fora do hospital na noite anterior à biópsia e corri oito milhas (cerca de 13 km). Falaram para eu marcar a cirurgia no cérebro, mas eu fui adiando para correr uma maratona e consegui marcar 3h07min35s, conseguindo me qualificar para Boston.

É ainda a martona mais rápida que já corri: a que venci, correndo com minha filha Kiana, completei em 3h07min36. O tumor tinha 17x21x22 cm no centro de meu cérebro.

Resolvi que faria uma cirurgia, mesmo sabendo que eles não poderiam extrair completamente o tumor. Se tirassem tudo, as sequelas seriam muito graves, eu perderia completamente a memória e também não seria capaz de conversar.

Os problemas com minha mulher começaram depois da cirurgia. Ela às vezes desaparecia no meio da noite, saía e a gente não sabia aonde ela tinha ido. Ela acabou pedindo o divórcio e hoje vive com alguém que começou a namorar enquanto eu estava combatendo o câncer. Apesar de pedir o divórcio, ela não pediu a custódia de nossa filha. Cerca de um ano e meio depois de ter ido embora, no segundo semestre de 2012, ela entrou com processo pedindo a custódia. O argumento era que, como eu estava tendo convulsões e ataques, não poderia ter a guarda, mas apenas direito a visitas periódicas, com supervisão.

Ela não conseguiu, mas o juiz lhe deu acesso às informações médicas sobre mim, e ela tem de pagar algumas das custas judiciais porque não cumpriu todos os compromissos acordados.

Depois da cirurgia, levou um tempo para que eu voltasse a correr. Os médicos já tinham me liberado, mas eu estava muito deprimido para sair. Finalmente, consegui fazer uns três quilômetros, mas doeu muito. Como era um pai solteiro e não tinha permissão para dirigir, por causa do câncer no cérebro, resolvi correr com minha filha.

Saíamos no final da tarde, eu a levava no carrinho, pensando que isso ia ajudar que ela dormisse melhor. Mas ela acabava ficando mais ligada. Então passei a correr com ela como uma brincadeira, para que ela se divertisse. Ela já tinha uns quatro anos. Antes, quando estava casado, eu nunca tinha corrido com ela.

Com minha filha, já corri várias provas de 5 km que não eram muito formais. Já ganhei a divisão de carrinhos de bebê de uma prova de 5 milhas, cheguei em segundo numa meia, venci na minha categoria, sendo décimo no geral, uma prova de 30 km, ganhei uma maratona e venci uma prova 3 milhas na minha categoria (fui quarto no geral). Estamos prestes a correr outra meia-maratona. Não sei se correr melhora ou piora minha situação, mas há estudos a respeito…

Kiana, minha filha, já correu em dezembro a versão infantil da Spartan race, uma corrida de obstáculos.

Quero continuar correndo com ela. Acho que não vai dar para levá-la no carrinho em uma prova de 100 km, mas poderemos andar de bicicleta. Já corremos várias distâncias, mas o que importa não é a distância, mas o tempo em que passamos juntos.

Minha situação está estável. Eu tenho problemas de memória e orientação espacial. Vomito às vezes por causa dos remédios que estou tomando. Já vomitei em corridas, mas, por alguma razão, nunca nas que participei com ela. Dentro em breve terei de fazer novos testes, espero quem saia tudo bem…”

Rodolfo Lucena

59, é jornalista, gaúcho, gremista, cachorreiro, escritor e ultramaratonista – já fez mais de 30 provas longas em cinco continentes. Autor de “Maratonando” e de “+Corrida”, atuou na Folha de S. Paulo por mais de 25 anos, faz o Blog do Lucena (lucenacorredor.blogspot.com) e o Maratonando com o MST (mstmaratonando.wordpress.com).

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