O que acontece quando um atleta se aposenta do ciclismo profissional? Será que ele continua forte? Vamos considerar aposentadoria como uma redução no volume (o número de treinos na semana) e intensidade (o quão forte é cada treino), mas sem parar de praticar o esporte. Parar seria abandonar o ciclismo. Nosso exemplo será o espanhol Miguel Induráin (5 vezes campeão do Tour de France 1991-1995, 2 vezes campeão do Giro d’Italia 1992-1993 e Campeão Olímpico 1996), cujos dados de desempenho 14 anos após sua aposentadoria foram publicados em um artigo científico – citado abaixo. Na época da avaliação, Indurain treinava durante seis meses no ano, com volume anual de no máximo 8.000 km (eram mais de 25 mil anuais quando competia) e frequência cardíaca abaixo de 165 bpm (batimentos por minuto). A avaliação incluiu um teste progressivo máximo com medidas de consumo de oxigênio (VO2), frequência cardíaca (FC) e lactato. Os resultados de Miguel Induráin após 14 anos de aposentadoria impressionam.
Potência máxima: 450 W. Isso significa uma razão potência/massa corporal de 4,88 W/kg. A quantidade de massa muscular, especialmente nos membros inferiores de um ciclista treinado, exerce influência direta sobre a quantidade de potência produzida. Além de ajudar em sprints, isso também é importante para manter elevadas velocidades durante as provas.
Consumo máximo de oxigênio (VO2MÁX): 5,29 L/min. Importante olhar para o valor de consumo de oxigênio relativo à massa corporal, que foi de 57,4 mL·kg–1·min–1, considerado excelente (>42 mL·kg–1·min–1) pelo American College of Sports Medicine para os 46 anos de idade que Miguel Induráin tinha quando foi avaliado. Embora o valor de VO2MÁX como determinante do desempenho seja questionável, todo ciclista profissional acaba apresentando valores de VO2MÁX elevados.
Frequência cardíaca máxima: 191 bpm. Aqui percebe-se a limitação no uso da fórmula “220 – idade” para predizer a frequência cardíaca máxima de atletas. Existem situações em que a FC não refletirá muito bem a intensidade do esforço, e por isso atualmente os atletas também estão controlando a intensidade de esforço por meio de medidores de potência e pela percepção subjetiva de esforço. Aliás, a percepção subjetiva do esforço é muito útil e falarei sobre ela em um post futuro.
Na Figura abaixo fiz uma comparação dos dados de Miguel Induráin em 1994 (competindo) e em 2010 (aposentado). A figura mostra valores de VO2 (relativo à massa corporal e absoluto, na coluna da esquerda) e potência (relativa à massa corporal e absoluta, na coluna da direita) máximos (obtidos no final do teste), relativos ao OBLA (onset of blood lactate accumulation, momento em que a concentração de lactato no sangue atinge o valor de 4 mmoles/L) e ao limiar de lactato individual (LLI, que leva em consideração o comportamento da curva do lactato em função do aumento das cargas de trabalho durante o teste de esforço). Não vou entrar no mérito de como essas medidas de lactato importantes para o treinamento são feitas, mas deixo algumas referências no final do texto. O fato é que quanto maior o VO2 e a potência produzida no momento do OBLA e do LLI, maior é a capacidade do atleta em manter um predomínio aeróbico no exercício, o que é uma excelente estratégia para ciclistas de estrada. Como era de se esperar, a aposentadoria refletiu perdas de desempenho aeróbico.
Mesmo aposentado, Miguel Induráin apresentou LLI a uma intensidade de 73,1% da potência máxima e 80,9% do VO2MÁX. Já o OBLA ocorreu em 82% da potência máxima e 88,5% do VO2MÁX. A queda no desempenho aeróbio relativo à massa corporal (VO2MÁX e VO2 na intensidade do OBLA) na aposentadoria foi de 27,3% e 36,5% respectivamente. Parte dessa redução se deve ao destreinamento, mas também há uma influência importante do aumento da massa corporal, pois no momento da avaliação em 2010, Miguel Induráin tinha 92,2 kg, 14% a mais do que em 1994. O percentual da FC máxima onde ocorreu o LLI foi similar em 1994 e 2010. Em 1994 essa transição metabólica aconteceu em 83,5% da FC máxima, e em 2010 a 83,2%. Isso aconteceu porque uma queda na intensidade correspondente ao limiar de lactato individual foi compensada pela redução na FC máxima durante o período. Por isso, olhar apenas para os dados de FC pode ser limitante na análise do desempenho do ciclista.
Nos 14 anos de aposentadoria, Miguel Induráin perdeu cerca de 12% de condicionamento aeróbico por década, e a produção de potência no limiar individual de lactato diminuiu cerca de 20%. O aumento na massa corporal pareceu ser o principal determinante da diminuição do desempenho do atleta.
Sendo assim, para manter um bom rendimento após sua “aposentadoria” das competições é fundamental controlar a massa corporal, já que o atleta aposentado parece conseguir manter ótimos níveis de esforço e valores absolutos de parâmetros fisiológicos, mas o nível de desempenho é prejudicado pelo aumento na massa corporal. Além disso, é importante realizar testes de esforço periodicamente, com o objetivo não só de quantificar o desempenho, mas também ajustar as cargas de treinamento de maneira adequada, o que refletirá uma melhor manutenção ou incremento da condição física, dependendo do objetivo buscado junto ao seu treinador.
* contribuiu para este texto o prof. Mateus Rossato. Para quem quiser ler mais, deixo algumas referências:
Quem estudou o Miguel Induráin aposentado: Mujika, I. The Cycling Physiology of Miguel Indurain 14 Years After Retirement. Int J Sports Physiol Perform. 2012;7, 397-400.
Sobre o OBLA: Sjödin B, Jacobs I. Onset of blood lactate accumulation and marathon running performance. Int J Sports Med.1981;2:23–26.
Sobre o LLI: Hagberg JM, Coyle EF. Physiological determinants of endurance performance as studied in competitive racewalkers. Med Sci Sports Exerc. 1983;15:287–289.
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