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Saudades das laranjas do Douro

Come-se muito bem em Portugal.

Bacalhau, por certo, doces, salgadinhos, tudo regado a vinho, cada bebida especial para combinar – harmonizar, é como se diz — com os gostos e temperos do alimento que acompanha.

Comi muito nos dias em que estive no Douro Vinhateiro – preparação para a “mais linda corrida do mundo” e compensação pelo esforço despendido ao longo daqueles belíssimos vinte e um quilômetros estradeiros — a história completa da aventura você lê na edição deste mês da revista O2.

Bacalhau assado, grelhado, cozido, desfiado, sequinho, com natas, com temperos, com batatas, houve de tudo. Lulas e polvo, também, cada qual regado a molhos com sabores até então desconhecidos para mim.

Estive num pequeno restaurante numa pequena aldeia, quase um boteco às margens de um riacho, ao lado de uma ponte construída há mais de mil anos.
Lá me empapucei com uma comida forte, caseira, carinhosa – alimento para o coração, dizem alguns.

Tinha a minha conhecida dobradinha com feijão branco, que revisitei e adorei. Mas a estrela foi um sensacional prato chamado de “milhos”.
Pelo nome, imaginamos espigas assadas na brasa ou mesmo algum tipo de torta.

Ledo e ivo engano.

Trata-se de um cozido feito com carnes diversas e embutidos, saborosíssimos, em que também entram “as couves” e, quase ao final, recebe farinha de milho na quantidade exata para engrossar o caldo sem que tudo se transforme em pirão.

Comi apenas uma cumbuquinha por respeito ao prato e às calorias; meu desejo era de raspar o tacho em que a iguaria foi servida.

Houve ainda sobremesas diversas, doces cremosos, bolos, rebuçados.
De tudo, porém, o que mais me agradou não foi o criado por mãos habilidosas de matronas cozinheiras ou de jovens chefs, mas o entregue pela natureza ao pé da árvore.

Falo das laranjas do Douro. Apaixonei-me por elas, deliciosas, sumarentas, adocicadas.

Na quinta onde fomos recebidos, a dos Varais, havia um pomar repleto de laranjeiras, e ainda limoeiros com limão siciliano e bergamoteiras (que os não iniciados no idioma gauchês chamam de tangerina ou mesmo mexerica).

As laranjeiras estavam carregadas, tingindo de dourado o pomar, com frutos enormes que mal cabem nas mãos abertas. Maduras, maduras, maduras, pontilhavam o chão, tantas eram que a colheita não dava conta.

Dia foi que voltei de um treino, suado e feliz, e não resisti à visão. Com a devida licença do dono da Quinta dos Varais, João Castro Girão Azeredo, que também é enólogo de fama reconhecida e produtor de excelentes vinhos, atraquei-me nas laranjeiras.

O fruto guarda semelhança à laranja bahia (a de umbigo, como conhecemos no Rio Grande do Sul). Tem a casca grossa, mas não muito grudada aos gomos: com um pequeno esforço, pode ser aberta com as mãos, como se fosse uma bergamota mais resistente.

E assim fiz. Enfiei dedos no coração no fruto, rompi a densa casca, sentindo nas unhas um pouco de ardência cítrica, e me lambuzei nas laranjas do Douro. O sumo denso me escorre pela barba, engulo gomos, puxo outra laranja do pé, como mais uma…

Foi uma orgia laranjística, experiência dionisíaca no pomar português.
Desde já, tenho saudades.

Rodolfo Lucena

59, é jornalista, gaúcho, gremista, cachorreiro, escritor e ultramaratonista – já fez mais de 30 provas longas em cinco continentes. Autor de “Maratonando” e de “+Corrida”, atuou na Folha de S. Paulo por mais de 25 anos, faz o Blog do Lucena (lucenacorredor.blogspot.com) e o Maratonando com o MST (mstmaratonando.wordpress.com).

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