Tecnologia no triathlon: solução ou problema?

Atualizado em 03 de agosto de 2018
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Certa vez ouvi dizer que “a tecnologia apareceu para resolver problemas que até então não existiam”. De certa forma concordei com tal afirmação. Arquivos na nuvem, terabytes, videoconferências, wifi, bluetooth,… essas coisas chegaram ao nosso cotidiano trazendo muitas facilidades, mas também vieram acompanhadas de novos problemas, novas necessidades, novas dependências.

Naquele momento, com um olhar crítico, mas inocente, pensei que esse boom tecnológico chegaria ao esporte trazendo somente o seu lado positivo. Ledo engano. A tecnologia também nos trouxe o pacote completo, acreditem. Longe de mim fazer o papel de advogado do diabo ou ser visto como o famigerado treinador “roots, old-school, tecnofóbico”, e por aí vai.

Sei muito bem da importância da tecnologia para as áreas da pesquisa, treinamento e avaliação no esporte. Tanto que uso e abuso desses recursos, principalmente com os atletas que fazem parte dos programas “online coaching”. Mesmo assim, frequentemente reflito acerca da problemática.

A tecnologia no triathlon

Fazendo uma comparação dos atletas que estão no triathlon há mais de 10 anos, com aqueles da geração mais recente, observo, em alguns casos, certas deficiências relacionadas ao treinamento de base, à formação do atleta, e a um apoio exagerado nos recursos tecnológicos.

Natação

Tecnologia no triathlon natação
Existem pessoas que chegam no triathlon e não nadam bem, ou não caem de amores pela natação. Mas de qualquer forma precisam nadar. Seria interessante desenvolver uma boa base de natação, trabalhando técnica, sensibilidade, consciência corporal, um estilo além do crawl, entre outros fundamentos. Mas aí a tecnologia abreviou tudo isso (será?) com o advento das roupas de borracha. Num primeiro momento o propósito era aquecer o atleta tornando possível competir em águas frias. Contudo, a sua flutuação ímpar “pseudo-solucionou” o problema desse atleta que não gostava de nadar ou que não nadava bem.

Mas e quando ele se deparar com uma prova em que a utilização da roupa de borracha não estiver liberada? Bom, ou ele deixa de correr essa prova, ou encara o desafio e tenta nadar o melhor que conseguir e do jeito que conseguir.

Pensemos… já que com a roupa de borracha um bom nadador consegue abaixar até 10 segundos a cada 100 metros, não seria mais interessante melhorar a natação, fazer uma boa base, e tirar mais proveito desse equipamento?

Ciclismo

tecnologia no triahlon bike
E aí é a vez da “magrela”. É no ciclismo que a tecnologia deita e rola ao longo das últimas duas décadas. Bikes supersônicas e aerodinâmicas, coroas ovais, medidores de potência, rodas de carbono, freios a disco. Tudo isso junto, montado e bem ajustado, revolucionou a forma de treinar e de competir. Porém, hoje vemos muitas pessoas chegando no esporte munidas de todo esse arsenal mas sem as noções básicas de ciclismo, como saber “girar” e fazer uma pedalada “redonda”, subir sentado e subir de pé, descer em velocidade, cambiar, entrar e sair de curva, fazer retornos (o quê?!), andar em pelotão, trocar pneu (!). Tudo isso é base!

Também é importante que o atleta desenvolva sensibilidade ao pedalar. Sentir se está imprimindo uma cadência muito alta comprometendo mais o fisiológico, ou se está pedalando numa marcha muito pesada, acarretando mais desgaste muscular, e relacionar tudo isso aos sinais que o corpo manda, como frequência cardíaca elevada, hiperventilação, percepção subjetiva de esforço, fadiga mental, etc.

 

 

Se o atleta faz um bom trabalho de base, somado aos recursos tecnológicos e à disciplina para treinar, é sucesso! Mas agora imagine o contrário. O atleta foi doutrinado a se apoiar 100% em números e dados, controla todo o seu desempenho através da tecnologia, e, de repente, acontece um imprevisto e ele fica órfão dos seus gadgets, ou até mesmo da sua superbike. Alguns saberão ativar o plano B e seguirão no jogo. Outros ficarão.

Corrida

tecnologia no triathlon run
A corrida, terceira modalidade do triathlon, também foi agraciada pelos equipamentos de altíssima tecnologia. Frequencímetros, GPS, pedômetros (ou acelerômetros), e medidores de potência para corrida apareceram na cena. Claro que, assim como no ciclismo, eles trouxeram grandes avanços e dados valiosos para o dia a dia do treinamento bem como para as competições.

A diferença aparece quando comparamos um triatleta ou corredor da “old-school” com aqueles mais novatos no esporte. A geração mais antiga sabe como ninguém interpretar o que o corpo está dizendo, durante o treino e durante as provas. Basta um relógio com cronômetro e uma meta a ser cumprida (sessão de treino ou prova) que eles dizem direitinho em que ritmo estão correndo, se esse ritmo está muito forte, quanto vão passar os 5km e quanto vão fechar os 10km.

Sabe o que é isso? Isso é conhecer o corpo, é conhecer suas capacidades, entender o que está acontecendo, saber qual a melhor estratégia a ser aplicada, e qual o melhor ritmo para aquele momento, naquela prova e diante daquele cenário.

A tecnologia no triathlon tem que agregar valor e não causar dependência. Caso contrário, lá na frente, poderá pesar na hora em que o atleta se deparar com situações adversas (no treinamento ou na competição) e precisar usar um plano B, fazer um “voo cego” em que o único instrumento que ele terá em mãos para consultar é o seu próprio corpo e as sensações.

Definitivamente, todo e qualquer atleta, deve passar por um longo e duradouro trabalho de base, de desenvolvimento, e de autoconhecimento, que promova sua evolução no esporte a fim de torná-lo um atleta cada vez mais experiente e completo.

Bons treinos e até a próxima!