Há muito tempo, em uma galáxia muito distante existiu um programa de TV chamado Grande Resenha Facit. O conceito de mesa-redonda sobreviveu à passagem dos anos e chegou, ainda que envelhecido e amargurado, aos dias de hoje. Já as máquinas de escrever Facit que patrocinavam o falecido programa dos anos 70, bem como a TV Rio, que o lançou em 1963, ficaram pelo caminho. Mas o fato é que o programa foi a gênese de tudo o que veio depois no universo da cobertura esportiva. A mesa era formada por Armando Nogueira, Nelson Rodrigues, João Saldanha, José Maria Scassa, Hans Henningsen (o célebre “Marinheiro Sueco”), Vitorino Vieira, o ex-jogador Ademir e, como âncora, Luiz Mendes, “o comentarista da palavra fácil”.
Não tenho idade para ter visto a resenha, mas conheço inúmeras histórias sobre grandes ideias, frases e pancadarias verbais que floresceram naquele covil de craques. Quem mais brigava, além do João Saldanha, que batia boca até com presidente milico, eram Nelson Rodrigues e Armando Nogueira. Isso porque, enquanto Nelson era um autêntico Policarpo Quaresma, defensor da supremacia futebolística do Brasil, Armando não disfarçava sua admiração pelas escolas europeias, que vinha dos tempos da gloriosa Hungria de Puskas. E foi antes mesmo da Resenha Facit, ainda na Copa de 1958, que Nelson — mestre dos mestres — eternizou em texto a rixa com o colega.
No tal texto de 1958, o pernambucano desancou as teorias do acreano, que defendia a supremacia física dos soviéticos. Para Armando, a organizada União Soviética aplicaria uma sova nos talentosos, porém pouco preparados brasileiros. Ocorre que, para azar das teorias sobre a superioridade do Velho Continente, Garrincha e Pelé estrearam em copas naquele jogo. Como gostava de dizer Didi, o que corre é a bola. E assim foi. Em poucos minutos, Garrincha desmontou o Sputnik do Armando e a Seleção venceu com dois de Vavá. O título da crônica do Nelson não poderia ser mais explícito: “As vacas premiadas somos nós”. Uma obra-prima, cujo recheio nem preciso comentar.
Catorze copas e cinco títulos mundiais brasileiros depois, é deprimente constatar que não somos mais as vacas premiadas. A coisa, no entanto, é bem pior do que parece. Sim, porque o Brasil podia ao menos ter cumprido tardiamente a profecia do Armando para a Copa de 1958: um time talentoso que acabaria derrotado por outro mais forte e organizado. Foi assim que perdemos em 1982, por exemplo, sem que sentíssemos um pingo de vergonha, embora náufragos em um oceano de dor. O problema da Seleção Brasileira que levou a maior sapecada de sua história foi que não apenas os alemães eram as vacas premiadas como também tinham o jogo bonito. Isso sim, é o que me causa depressão — no sentido tarja preta da palavra.
A Alemanha da última Copa varreu o nosso time do mapa jogando como um cruzamento do Brasil de 1982 com a União Soviética de 1958. Confesso que ao ver os alemães treinando na sauna para simular o calor, o moderno centro de treinamento construído por eles, não me impressionei. Ao contrário: tive um acesso de Nelson Rodrigues. Disse para mim mesmo que aquilo tudo era visagem, que eles eram os novos soviéticos, que nosso talento ia falar mais alto, que Neymar — qual um Macunaíma emo de óculos de aros grossos — liquidaria a parada e que, ao fim as vacas sagradas continuariam sendo nós.
Ao pensar como o Nelson, deixei para trás todas as lições que aprendi como corredor, ao longo de anos de treinamento duro. Preparo físico, especialmente quando aliado ao preparo mental, ganha jogos, sim. E ganha ainda mais facilmente quando vem com um software de qualidade técnica superior.
O duríssimo saldo final é que nós simplesmente não somos mais as vacas sagradas. E que os arautos do futebol-arte, meus amigos, agora são eles. Nossa lápide da Copa de 2014 poderia dizer: “Aqui jaz o Brasil que tentou jogar como Alemanha, humilhado por uma Alemanha que ousou jogar como Brasil”. Mais desolador do que isso, impossível. Que a terra nos seja leve.
(Coluna publicada na Revista O2, edição #136 – agosto de 2014)
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